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Um poema de Miguel Martins

 

ALDEIA 
 
Adoro as levadas caudalosas serpenteando por entre avencas, levando consigo pequenos blocos de terra, ensopando a terra, matando a sede a raízes que mais parecem teias de aranha cujo centro se esconde a vários palmos de distância ou longilíneas tarântulas
 
Adoro os verões iniciáticos, a aprendizagem de caminhos e trabalhos sob as copas densas, os banhos na represa por entre libélulas e alfaiates e o esgar de nojo quando, da ponte, se avista lá ao fundo um gato morto preso nas silvas das margens de água límpida
 
Adoro os invernos laboriosos, as encostas escorregadias, a lama nas botas, a misteriosa caminhada até cada courela, o gesto medieval que ceifa o talo à couve, o toucinho na salgadeira
 
Adoro o regresso do ruído, a chegada das crianças da cidade, adoro vê-las subir às amoreiras, as mãos miúdas confiando em nós de madeira centenária, enquanto os pais me visitam na adega, cortamos uma broa e abrimos uma garrafa de morangueiro fresco
 
Adoro as casulas e os paramentos na sacristia e o pó que os cobre nos meses de ausência do padre e o branco nu da capela e a pedra nua de todas as outras casas, que é da cor das folhas de tabaco secas da plantação que o Eduardo tem ao fundo do povo e esconde dos fiscais (ele que já viu mais mundo que todos os fiscais da região e trabalhou na PanAm e foi aos Estados Unidos)
 
Adoro as trutas apanhadas à mão e o viveiro de trutas, nossa única indústria desde que ruiu o moinho de água e só Deus sabe quanto isso me custou e custa, saber que não mais sentirei o cheiro do milho acabado de moer
 
Adoro as idas à mercearia da aldeia vizinha e a pouquíssima variedade de produtos que aí se encontra, como se estivéssemos em tempo de guerra ou o século XX não ousasse começar por aqui
 
Adoro os fogões a lenha, as enormes arcas de nogueira, os colchões de palha de milho confortavelmente concavados por décadas de hóspedes e a remota possibilidade de serem do tempo em que João Brandão, “o terror das Beiras”, se acoitou nestas casas
 
Adoro os audazes mergulhos da ponte metálica coberta de caganitas de cabra e as cabras e a mão desusada que as conduz e que sabe amar quando é chegada a noite ou quando é chamada a iluminar um recanto de sombra
 
Adoro as lamparinas e os morcegos que vêm chupar o azeite das torcidas, o cheiro das queimadas e o cheiro do tojo acabado de roçar, e as pequenas manchas roxas que as amoras esmagadas imprimem no chão
 
Adoro as ameaças e as benesses do céu e a certeza de que nelas se escondem todas as respostas da irrevogável vontade de Deus e adoro como uns são pais dos filhos dos outros e deixam Deus fora da questão e não pegam em espingardas
 
Sim, adoro esta aldeia sem caçadores em que os pardais só temem os espantalhos e os gritos que ecoam desde o outro lado das montanhas
 
Adoro o tio Alfredo, que espantava as almas penadas batendo com uma corda nas costas, e o primo Alfredo que trabalha tanto como quem trabalha mais e mimetiza o mesmo gesto para afugentar as dores que isso lhe dá por todo o corpo
 
Adoro a iniciação sexual dos rapazes, quase sempre com outros rapazes, anos antes de terem uma rapariga, o que só acontece aos doze anos e depois não quer dizer nada, que é como quem diz, fica vida fora
 
Adoro o orvalho desenhando folhas de plantas nos vidros das janelas e janelas nas folhas das plantas e a nitidez de todos os veios destas e de todas as veias na pele das mulheres, que nunca tomaram banhos de sol e sempre cobrem as cabeças com lenços ou chapéus de palha
 
 
E adoro-vos a vós que nunca vistes nem vereis a minha aldeia e acabais de a adotar pelo útero
 
 
Miguel Martins, Clube dos Poetas Vivos, Lisboa, 2002