Naquela noite aconteceram tigres e foi assim pelo país inteiro. Na cidade de São Paulo da Assunção, a que os mais antigos, como eu, ainda dão o nome de Luanda, uma centena desses grandes gatos silvestres cruzou com suas ágeis patas de veludo a dormência da Ingombota. Muitos os viram. O lume dos olhos riscando o error da madrugada, detendo-se aqui para cheirar as brasas de uma fogueira já quase extinta, ali para sorver a fatigada lama de alguma cacimba. Avançaram depois sobre a praça, onde ficam as casas e palácios dos governadores e capitães gerais destes reinos e suas conquistas, com honrada e sumptuosa morada, e em frente o corpo da guarda, e uns poucos mais de passos adiante o Paço Episcopal, sito junto à Igreja Matriz e assim foram indo, alarmando uma companhia de empacasseiros, que não tentaram dar-lhes caça, antes deles se apartaram muito lestos e em altas vozearias e apupadas. Empacasseiros são soldados pretos. Todos se acham armados de espingardas. Vestem uma tanga feita da pele de algum animal selvagem, bem apertada à roda da cintura, e trazem na cabeça uma grinalda de penas. Têm fama de bons soldados, e homens bravos, mas neste caso não fizeram justiça à boa glória de que desfrutam, pois fugiram, como disse, em gritaria, e esse alarme despertou as famílias nos seus palacetes e sobrados e muita gente assomou às varandas, vendo, sem compreender, o mesmo que eu vi: tigres, às dezenas, varando as ruas. No dia seguinte corria o forte boato de que tais tigres mais não eram do que aquela depravada corte de seiscentos homens trajados como fêmeas com que Dona Ana de Sousa, a Rainha Ginga, para toda a parte se fazia acompanhar.
Quando os holandeses invadiram a cabeça destes reinos, províncias e senhorios, estando os portugueses em desesperada fuga para a Vila da Vitória de Massangano, propuseram alguns oficiais, pessoas inteligentes nos usos e costumes da terra, que se contratassem a negros encantadores para que fizessem entrar na cidade onças, leões e tigres, de forma que tais feras, enfurecidas, engulipassem as tropas invasoras. Opôs-se o bispo, pessoa de muita fé, dizendo que não convinha a estratégia, pois não era guerra limpa, se não bastante suja, visto recorrer a artes do maligno, e não se fez o referido trato, o que no meu juízo foi muita pena.
«Descortina o leitor um tipo de português largo e inflado, ovante e intrusivo, propenso à calvície, com sobrancelhas de escovilhão, riso beiçudo, pelame encaracolado em todo o corpo, amador da piadola e da pirraça, grosseiro para os mais fracos, airoso para os superiores, em absoluto impenetrável a noções básicas de decência e decoro? Uma figura digna das Metamorfoses, em que se hibridam o entranhado lanzudo e o atávico malandrim? Não descortina? Então é porque este Quintão Malpique era uma raridade e convém, na passagem, examiná-lo mais de perto como espécime singular. Se lhe perguntassem por que é que ele se tinha queixado à polícia, por carta anónima, duma velha dependurava os cobertores nas traseiras do prédio, sem que isso afectasse ninguém, e muito menos os empregados duma empresa que não moravam ali, ele responderia, rindo: «É só p`ra chatear.» Do mesmo modo, quando telefonava para a Câmara, disfarçando a voz , a denunciar um vizinho que fazia obras clandestinas numa casa de banho, era «só p`ra chatear». Também era «só p`ra chatear» o gesto de deixar o elevador encravado no nono andar para que um casal de idosos , com o seu velho cão, tivesse de se arrastar pelas escadas. Comprazia-se, naturalmente, com a incomodidade dos outros. Uma acção que tivesse como motivação «chatear» parecia-lhe absolutamente justificada, desde que não fosse ele o chateado. Uma representação popular – aliás falsa e caluniosa – que atribui o incêndio de Roma a Tibério Nero Enobarbo, para depois celebrar a catástrofe, a toque de cítara, poderá não andar longe do feitio de Quintão Malpique, descontando o pendor artístico. Desde que descobrira a Internet, aliás tardiamente, tinha sido um alvoroço. Aplicava boa parte das horas de serviço a escrever comentários anónimos nos blogues alheios e nas páginas que os admitissem. Apreciava especialmente os jornais e as suas colunas de posts. Eis uma amostra de uma contribuição de Quintão Malpique para o debate nacional, que pode ser encontrada facilmente na imprensa electrónica, a propósito da questão, hoje esquecida, dos apoios ao cinema português: Esses senhores o que querem é repimpar-se!!! É só mama!!! Banquetes de lagosta, em Nice e em Cannes, aproveitando os favores do Estado e o dinheiro dos contribuintes. Isto é tudo sempre no poleiro, a chuchar no orçamento, à custa do Zé Povinho, e a gastar os nossos ricos carcanhóis com filmalhadas que ninguém percebe nem ninguém vê. Topam? Deviam era mandá-los todos cavar batatas e elas coser meias, a ver se ganhavam calos nas mãos e eram úteis ao povo que é quem mais ordena. Tá? Ao menos o doutor Salazar tinha critério e dava ao povo aquilo que o povo queria.»
À cripta dos Rossetti não se acede de modo confortável. Eu não sei se o teixo que a ensombra é ainda o mesmo que foi plantado para o primeiro enterro. Os teixos são longevos, isso é certo. As inscrições nas lápides mantêm os nomes dos seus mortos bem legíveis. A humidade inglesa não foi tão implacável como é do seu costume. As chuvas deslizaram pelas pedras como se as respeitassem. Com excepção da que assinala Lizzie. O texto que o buril afundou nela ganhou alguma qualidade orgânica. Águas e águas se depositaram, chamando os musgos para a reprodução. Está deitada na terra, a sua laje, muito verde, marcando uma diferença na família que nunca foi a sua. Apesar de italianos, os Rossetti podiam dar lições de frieza aos londrinos em especial no modo de tratar noras indesejadas. O único Rossetti que a amou, e, ainda assim, de singular maneira, foi sepultado longe, junto ao mar. Não quis que o enterrassem junto dela. Tinha a certeza de que não se morre e não era a certeza dos cristãos.
Estas são as primeiras páginas de As 3 Vidas, o novo livro de João Tordo, o autor de Hotel Memória. Edição da Quid Novi em Setembro.
«Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espectáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambulismo. Esses anos, que considero terem sido excepcionais — e, ocasionalmente, marcados por acontecimentos funestos —, deixaram-me num estado de melancolia crónica no qual, embora dele tenha procurado escapar, acabo inevitavelmente por voltar a cair. Esta melancolia, por vezes, resvala para o desespero, mas não vamos por aí; não é altura para, ao contrastar a minha existência actual com aquilo que em tempos foi, me deixar consumir pelo passado. Bastará dizer que não recordo um tempo em que a vida tenha sido particularmente feliz, mas que sou incapaz de esquecer cada hora que passei na companhia de António Augusto Millhouse Pascal. Há dois anos, uma notícia num jornal dava conta de um leilão onde, entre outros objectos, iriam ser licitados os documentos encontrados na casa do falecido jardineiro deste homem para quem trabalhei há mais de duas décadas. Quando soube, fiquei imediatamente apreensivo e, ao imaginar as consequências, quase furioso — é inevitável que a pessoa que arrecadou o lote acabe por remexer nos arquivos que eu compilei e mantive durante aquele ano na Quinta do Tempo e, se os observar com alguma atenção, acabe por chegar a conclusões que nada têm a ver com aquilo que verdadeiramente aconteceu. Surpreende-me, aliás, que isso ainda não tenha sucedido; que a reputação do meu antigo patrão ainda não tenha sido manchada, o seu nome usado erradamente, em detrimento da verdade. A ignorância a respeito deste homem impera. Não se pode dizer que essa ocorrência seja estranha, uma vez que, a partir de uma certa altura da sua vida, se relacionou apenas com figuras influentes de uma esfera privada. Os que o conheceram superficialmente e se recordam do seu nome terão dele uma imagem deturpada — por ter escondido a verdadeira natureza da sua obra, poderá um dia ser vítima do escárnio daqueles que preferem amaldiçoar a manifestar incompreensão. Millhouse Pascal, filho de mãe inglesa e pai francês, nascido em Portugal mas errante durante grande parte da sua vida — em Espanha durante a Guerra Civil, na Inglaterra nos tempos de Churchill, vivendo nos Estados Unidos após a queda do nazismo —, parece ter estado em toda a parte e em lado nenhum, uma sombra à margem dos acontecimentos e, contudo, posso assegurar-lhes, uma parte determinante destes. Se, nos próximos tempos, surgirem versões rocambolescas acerca das suas actividades, é porque estas ficaram no segredo dos que com ele privaram e que com ele conheceram a dedicação de um asceta; os restantes irão apelidá-lo de místico, excêntrico e, quem sabe, burlão. Também eu nada sabia sobre ele. A minha juventude, porém, permitiu-me experimentar coisas em que hoje me recusaria a acreditar, se me fossem apenas contadas. Custou-me o resto da minha patética existência, é certo, mas tive a oportunidade de viver em sua casa e de observar com os meus próprios olhos os seus métodos e a maneira prodigiosa como conseguiu transfigurar a realidade e influenciar — quase poderia dizer manipular — os que, ao longo daquele tempo, recorreram aos seus serviços. Pouco tempo depois do leilão, uma jornalista do Diário de Notícias que fazia uma reportagem sobre os casos em aberto da Polícia Judiciária interessou-se pela história oculta deste homem e, através de fontes que não quis desvelar, veio ter comigo, abordando-me à maneira petulante e lisonjeira dos repórteres — defeito da profissão pelo qual não a posso julgar. Agora que o homem está morto, disse-lhe, não vejo qualquer problema em contar-lhe tudo, e assim o fiz. Falámos durante três horas, e dei por mim a desbobinar a história dos últimos anos da sua vida que estava, compreendi então, indissociavelmente ligada à minha, à sua família, a Camila, a Gustavo, a Nina, a Artur, e à viagem que, em 1982, acabou por selar aquilo de que eu vinha suspeitando há tanto tempo, isto é, a nossa inaptidão para continuar a viver a vida de todos os dias depois de certas coisas acontecerem. Não me parece que a jornalista — que era uma rapariga nova, com a curiosidade dos aprendizes — tenha acreditado na maior parte das coisas que lhe contei. Perguntou-me constantemente se podia apresentar provas mas, como irão descobrir, não foi possível conservar quaisquer documentos desses dias — para além daqueles que se encontram em lugar e mãos desconhecidos — e respondi-lhe que, a ser publicada a história, teria de o fazer de boa fé. Passaram-se dois anos, comprei o jornal todos os dias, e nem uma linha apareceu sobre o assunto. Fui compreendendo, no tempo que passou desde a entrevista, que deixar um relato da minha experiência era uma necessidade. O que foi verdade e o que é, inevitavelmente, ficcionado, devido aos limites da memória, não importa — em última análise, a própria realidade é objecto de ficção. O mais importante é libertar-me dos fantasmas, pois acarreto com as sombras de todas as coisas a que não tive coragem para colocar um fim. Isso reflecte-se, sobretudo, nos meus sonhos: ao contrário da crença habitual, não me parece que os sonhos sejam o espelho dos nossos desejos; cá para mim, acho que os sonhos são o espelho dos nossos horrores, dos nossos piores medos, da vida que poderíamos ter tido se, numa altura ou noutra, não fôssemos incomensuravelmente cobardes.»