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LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

Sobre a Lusitânia, with love

De um serviço internético encabeçado por «Correio de João Ubaldo Ribeiro» (qualquer interessado poderá inscrever-se: ubaldoescritor@terra.com.br) arribou-me aqui ao Nordeste da Nova Inglaterra, esta mensagem:
«Subject: Interessante coincidência
«Querido Ancelmo [sic],        
Só para mostrar como este mundo é curioso. No mesmo dia em que eu recebia a notícia de estar sendo mais uma vez censurado em Portugal, assinei contrato para a publicação em inglês do mesmíssimo livro, em tradução de Clifford Landers (que também traduziu O Sorriso do Lagarto), com o título de The House of the Fortunate Buddhas. A prestigiosíssima editora, conhecida pela suas edições de clássicos universais, se chama Dalkey Archive Press e é vinculada à também prestigiosa Universidade de Illinois. Enquanto isso, na brava Lusitânia, onde no geral os brasileiros são tão apreciados quanto percevejos, entro na galeria dos pornógrafos proscritos e o Viva o Povo Brasileiro ainda está sendo examinado para ver se pode ser vendido na rigorosa rede. Pôde ser adotado duas vezes (o máximo que a lei permite) pelo Ministério da Educação da França como o livro-texto para o Exame de Agregação de Língua Portuguesa, mas tem que ser examinado por vendedores de supermercado, para ver se é leitura permissível aos portugueses. Abraços moralizados do velho
João Ubaldo.»
Um dia, no final de uma edição das Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim, ainda emocionado como ele se deixa ficar sem escondê-lo, disse-me ao despedir-se: «Onésimo, você usa essa coisa nova agora que chamam de e-mail?» Ao meu «sim», continuou: «Você faz um favor ao seu amigo?» Eu, claro só precisava dizer, e ele: «De vez em quando você manda um e-mail pra mim dizendo só: “João, você é bom!”»
Absolutamente desarmante como só o João Ubaldo.
Então o meu e-mail «Você é bom» lá seguiu assim:
«Meu querido João Ubaldo: Li e fiquei parvo. Que vergonha para a minha Lusitânia! Só discordo de uma coisa. Você sabe que não é verdade isso de os brasileiros lá na pátria serem tão apreciados quanto os percevejos. Você sabe bem que há muita, muita gente que realmente gosta do Brasil, para não falar dos “grandes brasileiros”. Vai, daqui do Norte da sua América, que agora é também minha, o açorianíssimo abraço de um grande fã do Brasil. Viva o Povo Brasileiro! Onésimo.»
Não pude esconder a pena daquele sentir relativamente à minha amada Lusitânia; impunha-se-me um amigo desagravo. A diáspora, tantas vezes o repito, tem razões que a mátria não entende. Como esse ficar-nos a pisar qualquer nicada porque, por mais que a gente bata nela, são sempre pancadinhas de amor, mas se os de fora lhe tocam a gente sente. Pior ainda se nos vem disfarçada nesse velho nome «Lusitânia», pois aí a mátria ganha estatuto de avó e toda a gente sabe como é com as avós. Ai de quem lhes tocar!
Por isso, completamente a despropósito das edições brasileiras em Portugal, ou mesmo da suposta atitude lusa contra os percevejos que João Ubaldo refere, vou contar uma história onde entra a nossa colectiva avó Lusitânia.
Estava-se em 1980. Numa paragem na auto-estrada 95, em Connecticut, eu comprava um café. Na fila de espera à minha frente, um sotaque inglês, estrangeiro, que eu não conseguia identificar. O moço parecia europeu, mas o seu inglês não. Tema de antiga curiosidade, quis resolver dúvidas e perguntei. «Da Pérsia», respondeu. Pensei rápido (rapidamente, para puristas). Aiatola Khomeini e os 400 reféns americanos no Irão haviam gerado uma péssima imagem daquele país. Percebi. Este estava a apostar na ignorância dos americanos sobre geografia e história estrangeira, escondendo-se num nome antigo. Deixei passar. Ao fim e ao cabo, tinha o direito de se proteger.
Anos depois, a Leonor e eu frequentávamos uma casa de chá em Providence. Conhecíamos a dona. Parecia francesa mas o sotaque não jogava com o estilo. Meses de curtas conversa-delicadezas junto à caixa. Um dia arrisco: «De que país é?» E ela: «Da Pérsia.»
Bingo, toma lá mais essa Onésimo, e cala-te! Mas a persa foi mais longe:
«E o senhor?»
«Da Lusitânia.»
O silêncio neste caso ficou no lado dela.

 

Crónica publicada na edição nº 81 (Junho) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Sâns… quê?

Ao leitor português devo parecer estranho por falar frequentemente dos meus alunos a elogiá-los. Um extraterrestre, imaginam-me. A minha salvação está em as experiências de que falo serem confirmadas por testemunhas que acontece aterrarem aqui. Seria, porém, menos suspeito – concordo – se fossem eles a fazer a narrativa.
Bom, mas vamos à estória. Um antigo aluno convidou-me para almoçar, no mais democrático estilo americano. Tive-o na aula ainda foi um dia destes, era ele caloiro, mas já anda no terceiro, que o tempo voa a jacto. Está a planear as cadeiras para o seu próximo e último ano e queria ouvir-me em conselho. Aqui seria preciso explicar como na Brown o currículo académico é extremamente flexível, permitindo aos alunos grande liberdade de escolha de cadeiras, por isso em 1500 licenciados cada ano nunca há dois com o mesmo elenco de disciplinas.
Perguntei ao Leo sobre os seus cursos deste semestre, qual o mais interessante.  «A leitura de poesia de Alcuíno», respondeu-me. Alcuíno?! Mas quem hoje com a cabeça no seu sítio se preocupa com as excogitações religiosas de um medieval, para mais silabadas em verso? Pelos vistos, o Leo. E disse-me do programa da cadeira e de como se inscrevera nela porque o professor era extraordinário a entusiasmar os alunos na descoberta dos labirintos complexos do mundo medievo. «Quantos na aula? Meia dúzia, não?» «De modo nenhum. Somos vinte e tantos.» Quase todos matriculados por causa do fenomenal Prof. Joseph Pucci.
Conversa engata noutra, livros mais leituras sobre isto e aquilo. O Leo, malgré o seu ar mais de desportista do que bookworm, prefere estudar nas bibliotecas e aninha-se acolá a meia colina do College Hill, no Athenaeum, mimoso espaço de uma associação cultural particular de antes de meados do século XIX aonde Edgar Allan Poe ia, vindo de Bóston, namorar uma tal Sarah Whitman, poetisa mesmo dali da Benefit Street, a rua de Providence que abre o filme Providence, de Alain Resnais. (Bom, o filme não tem a ver com Poe mas sim com H.P. Lovecraft, de quem Resnais era fã e cuja obra veio estudar na Brown com o meu colega Barton St. Armand).  Já que derivei um pouco, fique dito que a mãe da Sarah não ia na cantiga, achando que Poe, bêbedo profissional e na penúria, andava em cata do dinheiro da filha. Ou, mais especificamente, dos pais da filha. Sob pressão maternal, a pobre Sarah impôs-lhe o abandono da bebida se o namoro fosse para continuar. No entanto, Poe pelos vistos dispensava menos a pinga do que os encantos e versos dela.
Mas voltemos ao Leo. Aticei-o. Porque não fazia também umas cadeiras de Sânscrito, agora que temos na Brown uma sumidade mundial responsável por um programa de doutoramento nessa língua, e que por sinal tínhamos aprovado precisamente na véspera em reunião do Graduate Council. Ficou de ouvido afitado, o bichinho do interesse já a roer-lhe. Mas virei pragmático: «E o teu pai não te aconselha a fazer cursos mais práticos – Gestão, Medicina, Direito – que te possam garantir um emprego sólido?»
«Não. O meu pai também adora livros e na universidade procurou sempre uma formação clássica. Fez um bacharelato em Humanidades antes de ir para a Law School.»
Obviamente não pensa como o indivíduo citado num artigo recente do The Chronicler of Higher Education, precisamente sobre «The Humanities’ Value», tema hoje duro, em tempo de crise económica intensa, que alardeava: «Estamos a tratar de dinheiro e não de metáforas e não vou entregar as minhas finanças nas mãos de gente da Literatura!» (Ao que apetece ripostar: veja lá onde nos deixaram os das Finanças, Economia, Gestão e Negócios!)
Mas adiante. «Os meus amigos», diz o Leo, «é que às vezes expressam estranheza. Da última vez que estive lá na terra, alguns perguntaram-me sobre o que andava a estudar. Falei-lhes de um curso sobre Santo Agostinho em que tínhamos lido as Confissões.  Admirado, um deles perguntou-me: “Mas então já não tinhas lido as Confissões no teu tempo de liceu?”»
«Bom, lá tive de explicar», continuou o Leo com o ar mais natural, «que no liceu não as  tinha lido em latim…»

 

Crónica publicada na edição nº 80 (Maio) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Apeles, olha a chinela!

Dê-se um texto a ler ou a ouvir a um grupo e, em regra, pelo menos uma pessoa terá qualquer observação inteligente a fazer, por mínima que seja. Basta ver as «cartas ao director» na grande imprensa. Mas não só. Ao meu redor colecciono exemplos. Este é um pequeno «pacote» com alguns.
Há dias encontrei um antigo colega. Perguntou-me o que achava de duas passagens no Mau Tempo no Canal. Numa, o narrador diz que, do Campo Raso, na ilha do Pico, Margarida contemplava a Horta. Garantiu-me ele, Carlos Fagundes, que daquele local isso é impossível. Foi pároco nas redondezas e conhece bem a área. Perante essa evidência, que poderia eu contra-argumentar em defesa de Nemésio? A outra: no romance, Margarida foi à missa em Sexta-Feira Santa. Impossível! – acrescenta ele, que sabe da poda porque foi padre – esse dia é o único do calendário litúrgico em que não há missa.
Ora toma, meu querido Nemésio. Nenhum dos teus revisores entendia nem da geografia picoense nem de liturgia.
Falei em «pacote» porque estas foram apenas para servir de prefácio à seguinte. Numa das sessões das décimas Correntes d’Escritas, Gonçalo M. Tavares leu uma das suas inconfundíveis mini-estórias tão sua marca. Eu resumo grosseiramente: um homem vai pedir emprego e cortam-lhe uma mão. Volta mais tarde em nova tentativa, cortam-lhe a outra mão. Não sendo da estirpe de desistir, regressa e volta a pedir emprego. Cortam-lhe a cabeça.
Assisti à sessão no fundo do auditório a abarrotar de gente, dezenas de pessoas sentadas nos corredores. Veio o tempo de perguntas e pedi o microfone. Tinha uma: aquele final abrupto de estória à Anton Chekhov deixava-me uma enorme curiosidade. Para onde terá então ido trabalhar esse tal indivíduo sem mãos nem cabeça? Terá sido para o Governo?
Depois da chalaça, o diálogo com a mesa prosseguiu sério. Do meio da sala, levanta-se um ouvinte e caminha para a porta de saída. Passa por mim e cochicha-me: «Aquele homem não podia nunca ir trabalhar para o Governo. Sem mãos, como poderia ele meter dinheiro ao bolso?»
Não resisti. Voltei a pedir o microfone e tornei público o comentário desse anónimo que pelo menos eu desconhecia por completo.
Dia seguinte. No átrio junto ao auditório, os fumadores vingam-se da privação da chucha nos interiores e o recinto torna-se uma ágora grega de trocas de conversas em camaradagem absolutamente horizontal. De repente, uma cara desconhecida, olhar inteligente e expressão escondida por detrás de espessa barba faz-me sinal de aproximação. Quer dizer-me alguma coisa, mas evita ser intrometido. Avanço eu porque lhe reconheço o rosto. Exactamente o mesmo que na véspera passara por mim e mandara aquela boca. Meio entredentes, explica: «Considerei melhor. O dito personagem sem mãos e sem cabeça, lembra-se?»  Eu: «Sim, claro. Foi você que mandou aquela forte. Claro que me recordo.» Então o meu anónimo continuou: «Reconsiderei. O melhor emprego para ele não é no Governo, mas no Banco de Portugal. É que, sem cabeça, obviamente não tem olhos e não precisa deles porque nunca vê nada. Sem mãos, também não tem problema. Os amigos tratam de lhe pôr dinheiro ao bolso.»
E desapareceu.
Não resisti a, antes da minha palração pública, divulgar essa emenda do meu comentador privado. Tive de fazê-lo, porque corria o boato de que eu inventara a estória. Insisti que não, pois procuro ser fidedigno nos relatos. Se digo que aconteceu, aconteceu mesmo. Como a mãe do garoto da minha terra que foi posto fora da escola. Entra em casa a chorar sem conseguir explicar a razão. Mamã decide tomar conta do caso e vai à professora. «O meu filho foi mandado para casa porquê?» Ouviu então: «Porque ele disse que viu a coisinha da Joana.» Venta levantada, a mãe reagiu: «Saiba a senhora que o meu filho pode ser o que for, mas se ele disse que viu é porque viu mesmo!»
Horas mais tarde, outro indivíduo veio confidenciar-me a identificação do meu comentador particular. Director do Varazim (assim, à antiga) Teatro. Deu-me o nome mas, se o moço falou sempre em voz baixa, se calhar é porque prefere mesmo manter um semianonimato.

 

Crónica publicada na edição nº 79 (Abril) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Malindecências

O insulto foi tema em artigo recente de Dick Cavett no New York Times. Blogues portugueses fizeram-se dele eco por ser assunto grato ao nosso espírito nacional, que já bem no antanho produzia cantigas de escárnio e maldizer. Comentários diversos armando ao douto perderam algo que nem sequer era muito subtil: o nosso bota-abaixo solta-se por regra envolto em tónica de sarcasmo; os exemplos de Cavett tombavam mais para o lado da ironia. Nanja que o sarcasmo não produza tiradas coloridas de ficar, basta ver aquela de David Mourão-Ferreira em zanga com o primo, João Palma-Ferreira, a chamar-lhe «aprendiz de fascista». Mas a nossa verve prefere Camilo a Eça, este ao fim e ao cabo quase milagrosa excepção.
Confronte-se de relance The Book of Classic Insults, organizado por Tom Steele, que está longe de recolher as mais clássicas do mundo anglo-americano. (Curiosamente, a tradição do insulto em despique é prodigiosa entre os negros americanos, o playing the dozens.  Uma entrada comum pode ser Yo’mama… Há longas, intermináveis e constantemente acrescentadas listas de criativos impropérios.)
O artigo de Cavett empurrou-me para dedilhar algumas estórias pessoais e isso implicará infringir uma regra de ouro do contador de estórias: Nunca armar em herói. A verdade é que estes surgiram em contextos inofensivos, de pura jocosidade entre amigos. E, se fosse eu a apanhar, seria o primeiro a dar a gargalhada. Um exemplo? Há dúzia e meia de anos, no lançamento do livro de Vamberto Freitas, amigo e companheiro de jornada luso-americana, encontro de escritores açorianos na Maia, São Miguel. Coube-me a apresentação da obra e fi-lo num desfile de insultos. O Vamberto, apanhado de surpresa, conseguiu, nos agradecimentos, prolongar as risadas do público reagindo em idêntico tom, desancando-me com irónica pilhéria. Não havia gravador e foi pena. Lembro-me de uma dele: «O bom mestre deve educar discípulos para o ultrapassarem, e este meu livro é a prova de que o Onésimo foi um bom mestre.»
Com este intróito, sinto-me mais à vontade para prosseguir com outras.
Um dia, na Horta, ilha do Faial, colóquio de sala cheia. Uma brasileira de Santa Catarina evocava a colonização açoriana do seu estado: «Eu também sou açoriana, uma açoriana de 260 anos!» Do fundo da sala, saudei-a: «Olhe que está muito bem conservada!»
Há tempos, em Lisboa, o antropólogo luso-americano Miguel Moniz contava-me entusiasmado a sua experiência com um grupo musical: «Um belo grupo! No último show éramos doze!» Não resisti: «Na assistência?»
Estoutra passou-se no Brasil numa festa em casa do Paulo Pereira, genro do linguista Celso Cunha. Dei comigo a falar sozinho. No ar, a minha voz: «Não, esse livro nunca li!» Um venerando catedrático coimbrão, famoso sarcástico, manda do outro lado da sala: «Pois é, Onésimo! Você só lê livros de alto gabarito intellectual»!  Reagi: «Não diga isso! Você sabe que já li a sua obra toda!»
De outra vez, era uma sessão na Culsete, em Setúbal, e eu estava na mesa com os poetas Manuel Medeiros (também dono da livraria) e Eduíno de Jesus. Abre-se o diálogo e um crítico do Expresso comenta: «Ora vejam esta! Eu, um alentejano, aqui em Setúbal sentado a ouvir três açorianos!» Foi-me impossível resistir: «Até que enfim um alentejano inteligente!»
Não abusarei mais. Mas cito ainda uma clássica britânica que Dick Cavett não incluiu. Um brutamontes entra em sala onde elegantes ladies tomam chá e pergunta: «Há aqui algum sítio onde se possa mijar?» Serena, uma das senhoras responde: «Naquele corredor, ao fundo, há duas portas. Na segunda está escrito: “Cavalheiros.” Não faça caso. Entre!»
Há que terminar com um contra-exemplo da generalização inicial sobre a preferência lusa pelo sarcasmo sem reconhecido jeito para o cultivo da ironia. Em Alfama, certa figura local vê passar uma vizinha exibindo um invejável casaco de peles: «Dona Josefa, que lindo casaco!» O elogio foi recebido como portador de veneno. Daí a reacção: «Isto é só para quem pode!»  Dona Mariana não gostou, nem perdoou, e o disparo saiu implacável: «Estranha maneira de pronunciar o “F”!»

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.