Desde que entrei para os quadros do Círculo de Leitores, em 1986, a figura de Reinhard Mohn foi, sempre, mais do que uma figura tutelar da companhia. E muito mais do que a do CEO, como hoje imaginamos os CEO e os CFO. Há vinte anos, gerir uma companhia de edição e média implicava muito mais, sempre muito mais, do que a contemplação e as decisões sobre matérias exclusivas de gestão financeira. No caso de Reinhard Mohn, havia a História, e a travessia que lhe associámos sempre, a de um homem que construiu um império com base em duas circunstâncias especiais: a necessidade e a capacidade de inventar. A necessidade, provavelmente, veio primeiro em nome da velha e semi-destruída empresa familiar que Mohn teve de reerguer dos escombros da II Guerra e do nazismo; a capacidade de inventar foi o mais comovente, quando se recorda a maneira como começou a nova Bertelsmann e como se exportou essa ideia, da Alemanha para o resto do mundo, com os clubes do livro transformados em duplo emblema (empresarial, por um lado; de elevada responsabilidade social, por outro). Essa Bertelsmann que conheci há vinte e três anos não tinha ainda atravessado as vicissitudes da crise global dos média, mas recusava-se a parar no tempo, insistia em inventar, em criar, em apoiar os artistas, intelectuais, escritores e editores que trabalhavam consigo. Conhecer esse universo foi uma das mais marcantes experiências da minha vida. Conhecer -- mais do que superficialmente, apenas de passagem -- Reinhard Mohn foi um momento único, no antigo Great Ballroom do hotel Intercontinental de Frankfurt, entre duas ou três frases de pompa e de circunstância. Fui-lhe apresentado por duas pessoas com que trabalhei na época (Manfred Grebe, então administrador do Círculo de Leitores, e Gerhard Greiner, responsável pela divisão de clubes do livro, antes de ter assumido a responsabilidade pelas aquisições da companhia nos EUA). Cumprimentámo-nos mais duas vezes, em circunstâncias semelhantes; e ele perguntava «como vai Portugal?». Aprendi bastante, nesses tempos em que vivi mais perto da Bertelsmann: uma dimensão ética na vida empresarial; um compromisso permanente entre a companhia e os seus colaboradores (que incluía a entreajuda em casos pessoais, para além do pacto social estrito); o dever de os gestores conhecerem a fundo a vida da empresa, o que incluía a obrigação de conviver com todos os sectores e com todos os trabalhadores da companhia. Essa dimensão ética da vida na empresa não pode conceber-se sem o papel de Reinhard Mohn ao comando, e sem o papel que viria a ser desempenhado pela Fundação Bertelsmann, hoje proprietária da revista LER.
Tenho uma grande simpatia pelos velhos valores. Não por ser conservador, mas por verificar que são melhores. Mohn era um dos representantes desses valores -- de solidariedade, de colaboração, de fé. Era um homem que lia, que lia muito, e a quem a Europa deve o facto de ter contribuído decisivamente para a história da leitura e da edição de grande qualidade.
A fotografia que ilustra este texto reproduz um trecho de Fernando Noronha, como se o arquipélago ficasse a meio do caminho entre Portugal e o Brasil, mas sensivelmente inclinado para o Brasil. Há uma razão para a ironia: as palavras de Ruy Espinheira Filho, presidente do júri desta edição do Prémio Camões, que admitiu uma coisa que não deveria ter admitido. Segundo o escritor baiano, o júri da 20 ª edição do Prémio Camões «decidiu que centraria a sua discussão em escritores brasileiros». Mais: «Esses é que foram trazidos para análise.»
Essas declarações inquinam o Prémio e desvalorizam-no, precisamente no momento em que a CPLP se reuniu em Lisboa e decidiu investir na promoção da Língua Portuguesa. Inquinam-no e desvalorizam-no porque não é admissível que o júri se tivesse centrado apenas em autores brasileiros, da mesma forma que seria lamentável centrar-se apenas em autores portugueses.
O que o presidente do júri acaba por admitir é a quase irrelevância dos critérios do mesmo júri, apesar de admitir que não traiu o espírito do Prémio. Vamos e venhamos: não está em causa a atribuição do Prémio a João Ubaldo Ribeiro, mas sim saber por que razões (e, admitamos, é necessário conhecê-las) o júri «decidiu que centraria a sua discussão em escritores brasileiros».
Sabemos, todos, que existe uma certa rotatividade na atribuição do Prémio Camões (até para ser atribuído a autores de Moçambique e de Angola se teve em conta essa rotatividade...), mas daí até admitir publicamente que o critério eliminaria 50% dos hipotéticos candidatos vai um passo muito grande.
A compra, pelo grupo LeYa, das participações da Explorer Investments na área editorial, ou seja, aquilo que é conhecido como Grupo Oficina do Livro, constitui um marco na história da edição portuguesa. Nunca, até agora, um grupo económico e editorial conseguiu concentrar tantas marcas de edição, tantas empresas editoras outrora independentes, e ao mesmo tempo, deter um valor tão substancial em direitos de autores nacionais.
Essa concentração constitui, por si própria, uma mais-valia no mercado da edição. As «sinergias» e «energias» daí resultantes são um valor inestimável e importante. O grupo LeYa merece ser saudado pelas suas operações de aquisições e, de alguma maneira, distinguido pelo dinamismo que trouxe ao mercado editorial português. Tem, agora, responsabilidades acrescidas -- não apenas no capítulo da rendibilidade e da matéria financeira e económica, mas também no seu trato com autores e no capítulo da qualidade do seu trabalho. Com esta aquisição, incorporando o Grupo Oficina do Livro, incorpora também o know-how de editoras que mudaram o panorama editorial. António Lobato de Faria é um nome importante da edição portuguesa, para não mencionar o de Carlos Veiga Ferreira, que também já tinha sido associado à Oficina do Livro com a compra da Editorial Teorema. Tanto poder assim concentrado pode parecer perigoso. Certamente que o é. Mas é também uma garantia. E, se for perigoso, é-o sobretudo para o próprio grupo Leya, se não souber valorizar suficientemente a oportunidade histórica que tem entre mãos.
A Feira do Livro de Lisboa faz parte da paisagem da cidade. Por mais que nos irritemos com a sua organização, com a sua eventual desorganização, com a chuva da primeira semana de Junho e com a repetição do seu modelo tradicional – a Feira do Livro é um momento especial do calendário da cidade.
Ao longo de 77 anos, houve polémicas que a marcaram com alguma regularidade. Essas polémicas foram inevitáveis depois da criação da União dos Editores Portugueses porque duas associações (a APEL e a UEP) passaram a disputar o mesmo território.
Durante dois anos (2006 e 2007) coube-me alguma responsabilidade na Feira enquanto director da Casa Fernando Pessoa que, de responsável pela “programação cultural” em anos anteriores passou também a entidade organizadora por delegação de competências da Direcção Municipal de Cultura. Todos os envolvidos sabiam, em Maio de 2006, que aquele era o último ano em que a Feira iria seguir o figurino tradicional ou o seu modelo histórico; APEL e UEP foram avisadas de que havia alterações em 2007.
É preciso perceber porquê. Em primeiro lugar, era preciso introduzir alterações substanciais no modelo de funcionamento da Feira – no tipo de stands, no horário, nos serviços de apoio (restaurantes, bares, locais para a imprensa, etc), na “animação cultural” e na promoção. APEL e UEP estavam de acordo nisso. Em segundo lugar, não era possível prolongar a vida da Feira com as duas associações de costas voltadas e ignorando-se com antipatia – até porque havia processos em tribunal e acusações mútuas permanentes, uma situação incomportável. Em terceiro lugar, se cabia à CML (através da Direcção Municipal de Cultura e da Casa Fernando Pessoa) um papel tão decisivo, então valia a pena tentar mudar as coisas.
Em Setembro de 2006 elaborei o primeiro documento sobre a Feira do Livro; ambas as associações concordaram com ele. Durante seis meses tentámos o acordo, que parecia impossível, entre a CML, a APEL e a UEP. Nesse tempo, e confrontados com a agonia da administração municipal (que não tinha força política, não tinha gente suficiente e, finalmente, não tinha dinheiro), fomos forçados a alterar o documento de princípio. Explica-se sumariamente o novo rumo: a CML tinha pago, pela Feira de 2006, cerca de um milhão de euros. Era um número assustador. O pavilhão central era um sovedouro de dinheiro. A Casa Fernando Pessoa disponibilizava quatro funcionários, durante largos meses, só para organizar a Feira, e durante as duas semanas em que ela durava, quase se transferia para o Parque Eduardo VII.A “animação cultural” acabava por distrair os compradores de livros e por custar dinheiro inútil. A CML nunca obteve retorno da Feira. Por isso, alterou-se o modelo e cada um faria aquilo que sabia fazer melhor: a CML disponibilizava o espaço, pagaria licenças de ocupação, fornecia infraestruturas e policiamento, trataria da promoção e entregaria 200 mil euros às associações; com esse dinheiro, as duas associações, em conjunto, reuniriam os editores e tratariam da “animação cultural”. Foram necessárias muitas reuniões com a APEL e a UEP, em quem vi sempre vontade de colaborar. Tanto a Casa Fernando Pessoa como o Director Municipal de Cultura, Prof. Rui Pereira, apesar da desordem que na época reinava na CML, fizeram tudo o que tinham prometido. As associações entenderam-se e os processos em tribunal foram resolvidos. A Feira fez-se. Sinceramente, foi um dos melhores anos da Feira, com as duas associações reunidas. Nem choveu tanto.
Estranho, por isso, que este ano tenha regressado a balbúrdia. É um cenário novo, que tem a ver com a existência de um meio editorial forte e naturalmente ambicioso – mas que deve concorrer ao espaço público da Feira conforme as regras existentes, a menos que elas sejam alteradas em consenso. O ideal seria, evidentemente, que cada editor (e, no futuro, cada grupo editorial, uma vez que o mercado mudou) planeasse os seus stands com inteira liberdade e que o regulamento da Feira fosse mais maleável e a sua promoção mais festiva. Mas não me parece que isso seja possível em confronto. E esse confronto não é senão uma sombra de outro combate; o da guerra dentro da estrutura cooperativa. É só uma parte da poeira que anda no ar.