Luiz Ruffato quis dar uso público aos livros que não cabiam no seu apartamento; por isso, organizou uma biblioteca no Esporte Clube Taquara Preta — mas os traficantes de droga acharam que isso iria atrapalhar o seu negócio. Leia, na íntegra, a crónica do autor de Estive em Lisboa e Lembrei-me de Ti:
«Descobri, frustrado, que os livros que havia adquirido ao longo de toda minha vida – estamos falando de fins dos anos 1990 – não caberiam no apartamento para onde estava me mudando em São Paulo, pequeno e mal arejado. Após inúmeras noites sem dormir, percebi que a melhor maneira de me desvencilhar deles, sem perdê-los de vista, seria organizar uma biblioteca na Taquara Preta, bairro operário de Cataguases, onde moravam meus pais.»
A cena passou-se no festival de Jaipur (como quem vem ali do Paquistão e vira à direita), que se anuncia como o maior festival literário gratuito do mundo. Numa mesa em que participavam Jhumpa Lahiri e Jonathan Franzen, a escritora sino-britânica Xialu Guo insurgiu-se contra o predomínio e expansão de um tipo de literatura inspirado na norte-americana, realista e com ênfase na narrativa, facto que atribui à baixíssima percentagem de traduções no mercado anglo-saxónico (dois por cento do total de livros publicados). Para Guo, este afunilamento – num mercado que é fundamental para o reconhecimento global dos escritores (veja-se os casos de Sebald e Bolaño cujas ondas de popularidade partiram precisamente da celebração das respetivas obras na Inglaterra e nos EUA) – é nocivo porque uniformiza a leitura e condena aos guetos da intelectualidade os autores e as obras que fujam ao padrão-ouro da literatura norte-americana, que a mesma autora considera «sobrevalorizada». Disse-o na cara de Franzen, embora com o cuidado de garantir que adorava os seus livros. A nossa opinião? Bem, em primeiro lugar, Guo jogou pelo seguro num festival que decorre na Índia: criticou os EUA. Em segundo lugar, tem alguma razão no que disse. Em vez de permitir a entrada no circuito de estilos (vamos simplificar) alternativos, o que a globalização trouxe foi a expansão das tendências dominantes, ou seja, a desejada variedade deu lugar a uma crescente homogeneização da literatura. Em vez de muitos produtos diferentes na mesma montra global, temos os mesmos produtos nas diferentes montras locais. Mas não é o fim do mundo. O McDonald’s não acabou com as gastronomias locais. No caso dos livros, podemos afirmar, com algum grau de certeza, que we’ll always have Camilo e rojões à minhota. Bruno Vieira Amaral.
Imaginemos que, em vez de repetirem até à exaustão as indigências habituais pelas televisões, os nossos senadores e dirigentes políticos começavam a atacar os livros que poluem a moral, que põem em causa as nossas tradições e bons costumes, que — para abreviar, enfim — levantam as saias ao pudor ou às benfeitorias da pátria. Ah, isso seria um país culto, finalmente — não amorfo, onde tudo é igual a qualquer outra coisa, sobretudo em se tratando de livros, um objecto estranho. Não basta distribuir A Relíquia por todas as salas de aula do secundário — é preciso que um dirigente político proteste e queira saber quem fez essa coisa tremenda (infelizmente, uma larguíssima percentagem de dirigentes políticos formou-se em Miró e não lê Eça há bastante tempo, apesar de estar na mesa de cabeceira, claro). Esse é o instrumento mais perfeito do marketing livreiro, como prova a reação de Jean-François Copé, presidente do UMP, partido do centro-direita francês, que se declarouchocado com Tous à poil!, um livro ilustrado onde os personagens se vão despindo sucessivamente até mergulharem nas ondas de um mar estival. O livro, publicado em 2011 pelas Éditions du Rouergue, estava parado nos armazéns — mas em poucos dias atingiu o pódio nas vendas da Amazon.fr em 2014. Jean-François Copé, depois de dizer que a simples visão das imagens lhe paralisou o sistema sanguíneo, resumiu assim o livro: «Em pêlo o bebé, em pêlo a baby-sitter, em pêlo os vizinhos, em pêlo a mamã, em pêlo o cão... em pêlo a professora...» A imprensa, de esquerda e de direita, festejou o livro e o Le Figaro (que considerada os desenhos «muito realistas, mas muito infantis: explícitos mas sem maldade», resumiu bem o assunto: «Tous à poil! n.°4 nas vendas da Amazon: Obrigado Sr. Copé!»
Que pena que em Portugal os políticos não ataquem (e violentamente) os livros de que não gostam ou que acham impróprios e, em vez disso, o assunto lhes seja completamente indiferente. Que mimo poderia ser: «António José Seguro acha lamentável que Afonso Cruz use e abuse da cerveja nos seus livros.» «Passos Coelho acha o novo livro de Mário Cláudio o cúmulo da pouca-vergonha.» Não poderiam eles prestar esse grande serviço aos nossos autores? Basta uma palavrinha. F.J.V.
Adenda: O livro Tous à poil!, faz parte do conjunto de leituras aconselhadas em França por uma associação de promoção da leitura e as Éditions du Rouergue é uma editora prestigiada no domínio infanto-juvenil. Em 2011, recebeu o prémio Libbylit de Meilleur Álbum para Crianças.
Mein Kampf, o livrinho escrito há quase cem anos por aquela então jovem esperança do nazismo, Adolph Hitler, tornou-se um sucesso na sua versão digital. Parece que os leitores se sentem mais à vontade a beber clandestinamente a sapiência do Führer. Desta forma, os restantes passageiros do metro poderão estranhar o esgar maquiavélico daquele sujeito mas, não sabendo que está a ler o livro de Hitler, não se atreverão a pôr em causa as suas credenciais humanistas. Este é apenas o exemplo mais recente de uma tendência que terá atingido o pico com As Cinquenta Sombras de Grey. Aproveitando a privacidade dos e-readers, os leitores, resguardados dos olhares recriminadores dos outros, consomem a porcaria que lhes apetece. O que não é completamente mau. Pelo menos têm vergonha, o que é um primeiro passo para a reabilitação. Bruno Vieira Amaral.
Zadie Smith sobre coisas desesperadamente simples e banais: por exemplo, a diferença no serviço de restaurantes de takeaway ou takeout em Londres e em Nova Iorque. Em NY, entregam comida em casa com mais rapidez e simpatia — deve ser por isso, escreve a autora de Dentes Brancos, que há mais escritores a viver na cidade.
Tenho uma enorme dificuldade em começar o ano: o frenesim festivo angustia-me, não o entendo. Nunca consegui ser feliz por decreto, creio que é por isso que tenho menos queixas da vida do que o comum dos portugueses. Não tenho um temperamento enevoado nem cultivo o cepticismo desamparado que serve de sedutor cenário ao pós-guerra da emancipação das mulheres: detesto gente lamurienta, gosto da festa quotidiana do amor e da alegria – por isso embirro com os rituais de festejo obrigatório: as doze passas (quem tem doze desejos assim tão organizadinhos e independentes?), o pé no ar, os abraços e beijos convencionais, o demónio das resmas de sms de pessoas que durante o resto do ano não querem saber se estou viva ou morta, tudo isso me dá cabo do juízo. E sobretudo mata-me os bons sentimentos, o que é triste e nem sequer é fado. Não podemos candidatar os bons sentimentos a património imaterial da humanidade? Sempre serviam para alguma coisa, porque para a literatura parece que deixaram de servir assim que o Cervantes morreu, o que me faz pena.
Assim, nesta passagem de ano, fugi para dentro do mundo de Clarice Lispector – um mundo de uma lucidez alucinante, que nos instiga a desbravar o tutano da vida. As frases de Clarice são relâmpagos que iluminam a mais bruta e profunda matéria do humano. Todos os seus livros são prodigiosos, no sentido literal: a cada releitura trazem novas descobertas – e, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é necessário ser-se «intelectual» para aceder a Clarice. É necessário, sim, ser-se uma coisa mais difícil: livre, como Clarice profundamente foi. Essa liberdade exige inocência, a capacidade de olhar para o já visto e já nomeado como se não o conhecêssemos. O dom da sua escrita é o de iluminar os objectos e os seres mais simples, interrogando-os para os entender, sem juízos prévios. A força da sua voz advém dessa inocência inexpugnável, valente, ilimitadamente ousada. Releio Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres porque é o mais perfeito e feliz livro que conheço sobre a paixão como conhecimento em crescendo e intensidade física que perdura – contra séculos de literatura que choram a sua tragédia e brevidade. Este romance não começa nem acaba: abre com uma vírgula e uma mulher excessivamente ocupada, termina com dois pontos depois dos quais Ulisses continuaria a dizer a Loreley o que estava a pensar. Deste modo, Clarice diz-nos que a conversa íntima entre dois amantes é infinita e particular – e diz-nos simultaneamente que o que se segue será da nossa responsabilidade, será o nosso livro, o nosso romance. Se todos podemos ser Ulisses e Loreley, cada um o será a seu modo – esta mistura de individualidade e impessoalidade extremas é a pedra de toque da modernidade global e fragmentária em que vivemos, e é também a qualidade suprema da escrita de Clarice: tudo aquilo de que ela fala nos rasga as entranhas, por muito estranho que pareça – e nessa estranheza entranhada a nossa alegria e a nossa dor são também a descoberta do mundo.
A vírgula, acumulativa, digressiva, buliçosa, sinaliza a mulher. Os dois pontos, defensivos, reflexivos, narcísicos, sinalizam o homem. O que se passa durante o romance é a aproximação entre estes dois mundos, até à fusão. A relação entre Loreley e Ulisses faz-se de silêncios, esperas, um trajecto de noite e solidão em que tudo o que ambos sabiam antes de se encontrarem se transfigura e prepara para a sabedoria maior do amor. O erotismo cresce, página a página, de um modo sinfónico perfeitamente orquestrado, até esse clímax em que os amantes «se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles». O que é raro e belo é que continuam ainda a amar-se, para lá da página e da pontuação. Em 2012, sei que Clarice estará ao meu lado, noite após noite, com o coração selvagem que nunca perdeu– e, afinal, só isso importa.
Crónica de Inês Pedrosa (segundo o anterior acordo ortográfico) publicada na edição de janeiro da LER.
Um jornal ou revista resolveu fazer teste ou coisa parecida à cultura dos estudantes universitários. De vez em quando, dá-lhes para isto. E é sempre uma comoção de almas escandalizadas. Vão para a rua e desatam a fazer aos incautos perguntas que acham que devem ou pelo menos podem ser feitas, para as quais julgam ter a resposta e a respeito das quais entendem que a falta de resposta é sinal gravíssimo de ignorância do inquirido, da falência do sistema de ensino, de crise dos valores, da família e do raio que os parta. Vê-se que não atino com este tipo de iniciativas. São mesquinhas, estúpidas, desnecessárias. Humilham uns, expondo-os para satisfação de outros. Porque tem de haver alguma satisfação para alguém, ou não se entende porque insistem.
Talvez com a esperança de que as novas gerações estejam mais cultas… Mas é contra-senso: esses inquéritos trivializam o que julgam sacralizar. Perguntas sobre títulos e nomes de artistas, cineastas, músicos, acontecimentos históricos, monumentos, nomes de ruas e o mais que se sabe, escandalizam porque a falha na resposta, presumem-na os promotores do teste sintoma de ausência de cultura geral, a qual no entanto só permite tal presunção se for reduzida ao corriqueiro, ao básico, ao que toda a gente devia saber: cultura de almanaque, em suma (e será por isso que ninguém anda pela rua a pedir, por exemplo a quem leu Lobo Antunes, definições de «edição ne varietur»).
O grau de familiaridade com essa cultura de almanaque é o que as perguntas permitem testar: se mostram o que o inquirido não sabe, não deixam ver o que sabe nem perceber outras qualidades relevantes na avaliação intelectual do cidadão, jovem ou cota. E não podem impor significado exclusivo para a ignorância em certo ponto particular. Uma menina não saber quem escreveu O Evangelho segundo Jesus Cristo significa exactamente o quê? E é lastimável exactamente porquê? Será o mesmo que não saber quem escreveu, digamos, O Capote, ou Lazarillo de Tormes ou Dubliners? E se alguém mais informado respondesse que «quem escreveu O Evangelho segundo Jesus Cristo foi o mesmo que publicou Os Poemas Possíveis», quem nos garante que o inquiridor saberia estar diante de resposta correcta?
E aqui tocamos o ponto escandaloso da abominação: os inquiridores não são obrigados a saber mais do que os inquiridos nem é requerido que tenham passado por provação idêntica. Na verdade, apenas estão colocados ou se colocam em posição que os isenta de serem por sua vez inquiridos: a posição de quem pergunta, justamente. Quem pergunta pode decidir o conteúdo da pergunta e os termos da pergunta; pode escolher a quem pergunta; sobretudo, pode apresentar-se e pedir respostas… como um polícia, juiz, procurador ou outro com autoridade para exigir da testemunha a verdade.
Ora, como alguém disse, se não queres que o teu vizinho te minta, não lhe perguntes nada. A mentira é recurso legítimo diante da inquirição abusiva ou apenas inadequada. Aqui não é questão de mentir, mas de perceber que só a tendência benigna para colaborar graciosamente com a imprensa e sobretudo a televisão conduz os inquiridos a responder e os coloca em posição de serem declarados ignorantes e expostos enquanto tal na página ou na televisão. E o ignorante nem se apercebe de que exigir respostas é muitas vezes uma afronta, uma prepotência intolerável, sendo o caso destes testes de «cultura geral» uma dessas vezes.
É urgente por isso que se reformem os hábitos. De cada vez que um braço desses inquéritos, jornalista inocente ou estagiário que seja, se abeirar de alguém para lhe perguntar, por exemplo, se sabe quem foi o poeta que dá nome à rua onde vive, sugiro que o cidadão replique propondo este simples acordo: bem ou mal, responderá, mas só depois de o jornalista lhe explicar detidamente o que é o «discurso indirecto livre». Uma coisa que sempre quis saber, sabe? que gostava mesmo de saber, e que na sua profissão, tão generosa, deve abundar… sim, o que será o discurso indirecto livre…?
Crónica de Abel Barros Baptista (segundo o anterior acordo ortográfico) publicada na edição de janeiro da LER.
Não é coisa de somenos tentar intuir o que seria a literatura portuguesa com Jorge de Sena e Ruy Belo sobrevivendo duas ou três décadas à deadline de 78. Imaginar como entre si dialogariam, e cada um com hipotéticos interlocutores: Vasco Graça Moura e Joaquim Manuel Magalhães face a Sena (indignação, inscrição, culturalismo), António Osório e João Miguel Fernandes Jorge face a Ruy Belo («esgotamento dos imperativos do modernismo», para usar a síntese de Osvaldo Manuel Silvestre), Alberto Pimenta, António Franco Alexandre, Al Berto e Nuno Júdice, vozes inorgânicas que estabelecem a linha de fronteira entre o antes e o depois, ou seja, entre Fernando Assis Pacheco e Fiama Hasse Pais Brandão, por um lado, Helder Moura Pereira e Adília Lopes, por outro. Atento a tudo o que mexia, Sena largamente escreveu sobre este mundo e o outro: os cancioneiros, Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, romantismo, modernismo,presencismo, neo-realismo, surrealismo (o famoso choque com Cesariny), literaturas estrangeiras, com especial enfoque na brasileira e na inglesa, etc., dando particular atenção a Camões, Almeida Garrett, Antero de Quental, Gomes Leal, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Florbela Espanca, Vitorino Nemésio, António Gedeão, Ruy Cinatti, Tomaz Kim, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neill, etc., sem esquecer Manuel Teixeira Gomes, José Rodrigues Miguéis e mais uns quantos. Convém acrescentar a Terceira Série de Líricas Portuguesas (1958), antologia que, contando com a edição aumentada de 1972, junta 73 poetas nascidos entre 1871 e 1929, fechando com Ana Hatherly. (Somados, os respectivos verbetes fazem um exaustivo tour d’horizon da poesia portuguesa de Novecentos.) A cronologia é cristalina. E do lado de Ruy Belo? Desobrigado de tineta académica, o autor de Na Senda da Poesia (1969) usou de parcimónia. Escreveu sobre Sena, a pretexto dos sonetos de Camões, e também sobre poesia italiana, Fernão Lopes, Manuel Bandeira, José Régio, António Gedeão, Adolfo Casais Monteiro, Ruy Cinatti, Sebastião da Gama, Herberto Helder, Nuno Guimarães e, em 1971, sobre João Miguel Fernandes Jorge: «Há mais de um ano que trabalho neste prefácio. Consegui ultrapassar o período de tempo que decorre entre o começo e o final dessa obra-prima que é Um Homem sem Qualidades, de Robert Musil.» Ao contrário de Sena, Ruy Belo não era historiador da literatura nem sequer crítico com tribuna. Em 1978 muda tudo. Morrem Sena e Ruy Belo, Carlos de Oliveira publica Finisterra, e Eduardo Lourenço inicia com O Labirinto da Saudade a psicanálise mítica do nosso destino. Ao tempo, o génio de Agustina Bessa-Luís embaraçava o milieu, porque A Sibila (1953) fora elogiada por Régio e a trilogia da revolução — As Pessoas Felizes (1975), Crónica do Cruzado Osb. (1976), As Fúrias (1977) — provocava azia no PREC. A canonização começou com Fanny Owen (1979) e o filme de Oliveira. A maioria das pessoas não se lembra, mas o primeiro romance de Saramago é de 1947, e o segundo, Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977. Nesse intervalo de 30 anos escreveu versos e crónicas. O aval do establishment chegaria em 1980, ano em que publicou Levantado do Chão. Em 1998, no exílio espanhol, et pour cause, o Nobel. António Lobo Antunes apareceu em 1979, dois livros de uma assentada, primeiro Memória de Elefante, logo a seguir Os Cus de Judas, mudando mais fundo do que era verificável à época. É fácil verificar que o mundo de Sena e Ruy Belo, como representado em 1978, sofreu uma guinada. Esse mundo, dominado por Torga, José Gomes Ferreira, João Gaspar Simões, Vergílio Ferreira, Óscar Lopes, Fernando Namora, Sophia, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Cesariny, Natália Correia, Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira, Nuno Bragança, Herberto Helder, Maria Velho da Costa, Fiama, Almeida Faria, etc., esse mundo, dizia eu, mudou. Teria mudado da mesma forma caso Sena e Ruy Belo tivessem sobrevivido mais uns anos?
Crónica publicada na edição de Dezembro (nº 75) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.
Quando morri, em 1989, ainda não existia Internet. Laptops eram uma curiosidade que nenhum viajante digno desse nome aceitaria transportar. Estou a lembrar-me do Portable 386. O nome pode soar como uma piada sarcástica para vocês, que vivem em 2008, pois pesava nove quilos e incluía uma alça, como uma mochila, de forma a facilitar o transporte. Trazia um teclado separado do pesado corpo principal e não possuía bateria. Só trabalhava ligado a uma tomada. Se em 1974 eu tivesse viajado para a Patagónia com um MacBook na minha mochila hoje não se venderiam Moleskines. Eu comprava os meus cadernos de capa preta sempre que ia a Paris, numa papelaria da Rue de l’ Ancienne Comédie. Naquela época já não se fabricavam mais Moleskines e aquela era a última loja que os tinha. Hoje vendem-se em qualquer boa livraria, seja em Nova Iorque ou no Rio de Janeiro, até mesmo em Luanda, com um papelucho lá dentro a explicar que eu, esta alma errante que agora vos escreve, tomava notas em cadernos idênticos. Pode ser que a literatura não tenha poder para mudar o mundo, mas enquanto for capaz de ressuscitar cadernos mortos não a poderemos considerar totalmente inútil. Hoje em dia comprar um Moleskine é o primeiro passo para iniciar uma carreira literária. Repararam naquele rapaz de farta cabeleira ruiva, sentado diante de vocês, no metro, que a determinada altura puxou de um Moleskine? Ah, tremei – um escritor! A senhora alta, de rosto severo, na biblioteca, a consultar periódicos do século XIX, enquanto toma notas num elegante caderno de capa vermelha (agora fabricam-nos em várias cores)? Também ela uma escritora. Os Moleskines são igualmente muito populares entre os artistas viajantes, que confiam às suas páginas rápidas imagens dos lugares por onde passam (papel com 25 por cento de fibras de algodão, sem acidez, portanto capaz de resistir incólume durante gerações). Prosperam na Internet sítios dedicados à contribuição dos Moleskines para o progresso das artes e da literatura. Recomendo o Moleskinecity.com ou o Detour, que reúne uma notável colecção de cadernos criados por artistas plásticos, arquitectos, ilustradores e escritores. O que mais me agrada neste eufórico e colorido regresso dos Moleskines é o facto de se tratar de um triunfo do papel sobre o digital, da tradição sobre a tecnologia – com o apoio da tecnologia. Acreditem, eu realmente gosto dos MacBook, magníficos objectos «construídos a partir de um único bloco de alumínio e cortados com precisão milimétrica», diz a publicidade; a mim parece-me a descrição de uma escultura moderna e não de um electrodoméstico. Compreendo também a paixão pela Internet, embora a ache uma forma preguiçosa de obter conhecimento, e reconhecimento. No meu tempo (só os mortos deveriam poder servir-se desta expressão), se queríamos parecer eruditos tínhamos de nos esforçar um pouco mais. De tanto nos esforçarmos, fuçando em obscuras bibliotecas, ou entrevistando veneráveis coleccionadores de porcelana, acabávamos realmente por fixar dois ou três factos relevantes e por descobrir pistas para outros tantos. Há jovens escritores de viagens, hoje em dia, que produzem belos livros sem nunca saírem de casa. Atravessam, pelo Google Maps, os areais da Namíbia e as florestas da Malásia. Conversam longamente, pelo Skype, com índios isolados pelas cheias no Pantanal de Mato Grosso. Compram, no sítio de alguma organização não governamental, artesanato pigmeu que lhes é entregue em casa, cinco dias mais tarde, ainda a cheirar (genuinamente) a selva e a catinga. Não tenho nada contra isso, compreendam. Toda a viagem é uma invenção. Dei-me conta de que a minha obra tem vindo a ser relançada no mercado português, com a chancela da Quetzal, em edições muito cuidadas. Fiquei feliz. Foi isso que me motivou a procurar os serviços de um psicógrafo – infelizmente de duvidosa reputação, mas, o que querem?, era o único disponível –, para vos fazer chegar estas palavras. Isso e o tédio (não existe pior prisão do que a eternidade). Enquanto continuarem a ler os meus livros, continuarei a viajar.
Crónica publicada na edição nº 75 da LER. Ilustração de Pedro Vieira.
Há dias calhou que eu deixasse na «caixa de comentários» dum blogue umas frases destratando o respectivo autor. Assinei «anónimo». O sujeito abespinhou-se, e uma das coisas que logo lhe saiu foi a acusação de cobardia: que se eu fosse homem, hein? e valente, hein? não me escondia no anonimato. Estive a pique de retrucar que, fosse eu homem, e valente, hein! estaria no mar, a enfrentar a natureza a bordo dum veleiro frágil, em vez de ler blogues, demais o dele, que não presta para nada. Mas o assunto esgotara-se, ou melhor, esgotara-se o prazer, o da malandrice, que deve ser acarinhado sem apelo à temperança.
Depressa percebi que os anónimos, maltratados há muito tempo, ganhavam em constituir um grupo de auto-ajuda. Os blogues com caixas de comentários, creio eu que só asseguram a possibilidade do anonimato para os agredirem com o argumento fácil da acusação de cobardia. Fácil porque é verosímil a suposição de que o anonimato esconde. Acontece que um comentário assinado «Anónimo» mostra mais do que esconde. Por exemplo: mostra que o comentador não quer que saibam quem escreveu aquilo; ou, por pudor, não quer que saibam que lê aquele blogue; ou ainda que renuncia a assinar o comentário. São coisas distintas, e alinho-as na ordem crescente de dignidade. Quem renuncia a assinar, é indisputável que o pode fazer por generosidade, no caso em que não reivindica vantagens de uma frase particularmente inteligente ou lúcida; ou por sentido crítico, tendo compreendido que a pertinência do que escreve não se decide pela presença do nome; ou ainda por sentido autocrítico, no caso em que sabe que nada do que escreveu é lúcido, ou elegante, ou sequer necessário. Porque escreveu, então? Decerto para satisfazer alguma inclinação, que devemos aceitar, ainda quando perversa, ou algum impulso, que devemos abster-nos de condenar: não se negue nem reprima o prazer proveniente do escárnio.
Pergunto-me, de resto, se o mal do anonimato não estará antes em certo vício dos que se assinam em ordem e exuberantemente. Há pessoas convencidas de que a aleivosia dita em voz alta — «com toda a frontalidade»… — ganha só por isso certo mérito. Daí ao passo seguinte, o sofisma: a aleivosia assinada teria mais mérito do que a anónima, que não teria nenhum. Escapa-me a razão. Mas o problema não é moral. Reparem: um sujeito faz imprimir em papel um artigo ou ainda um livro inteiro e arrisca-se a que, à mesma hora, outro sujeito lhe chame imbecil em Braga enquanto um terceiro, em Lagoa, lhe decora as frases em estado de adoração. Quem vai saber de um e outro? Anónimos, indeterminados, dizem o que lhes apetece, para si próprios ou para quem estiver a ouvi-los: chama-se a isso crítica doméstica. Os comentários no blogue quase trazem para dentro de casa a crítica doméstica, como que impelidos pela etimologia. A coisa roça a promiscuidade, e daí que o anónimo em parte atenue mas sobretudo represente a indeterminação: já é bom saber que alguém leu; melhor ainda que deixou rasto; mas o anonimato mostra, evidencia, testemunha – tudo em vez de encobrir – a indeterminação dos sujeitos da crítica doméstica. Situação análoga, para os escritores juramentados, seria ouvirem vozes sem verem os corpos que as proferem: «idiota», «cretino», «despautério», mas também «magnífico», «hilariante», etc. Bela cena, hein?
O anonimato é útil; mais: é desejável; aliás, é inevitável. Princípio regulador, testa os mais capazes pela exposição a juízos gratuitos, afirmações infundadas, sarcasmos ofensivos, e por aí fora. Uns clamam por discussão séria… A desfortuna é que há ocasiões apenas adequadas a lembrar a precariedade do que se diz, a vaidade inerente à publicação, o esquecimento ali à espreita, ocasiões como que causadas por alguma força superior, força anónima, justamente. Sempre que alguém barafustar que o anonimato não vai com a discussão séria, decidamos logo que é tolo ou puritano, e apenas ao segundo valeria explicar que há outras coisas na escrita ou na dita blogosfera além da discussão séria. Mas não se espere do puritano que sequer perceba que essa perturbação da fronteira entre a crítica impressa e a doméstica, afinal aquilo que lhe permite exprimir-se livre e imediatamente, dá aos outros, os indeterminados, a possibilidade e o prazer, logo, a legitimidade de o considerar irrisório e de lhe bater à porta para lhe dizer isso mesmo.
Ana Moura gostava que eu fosse vivo. Vivo, escreveria versos para fados que depois ela cantaria. Disse-o recentemente em entrevista ao jornal Público. Eu, que nem tenho a certeza de ter estado vivo alguma vez, da mesma forma que não tenho a certeza, agora, de estar realmente morto, escreveria de boa vontade os tais fados, contando que fosse numa taberna – e não pelos fados, Ana, mas pelo vinho. Estar ao serviço de Ana Moura, na Mouraria, nem sequer me parece fado atroz, ao contrário de tantos outros que me têm imposto desde que naquele dia 30 de Novembro de 1935 me deixei arrebatar pelo sonho e parti (sempre gostei de sonhar; sonhar sem o receio de despertar, eis a perfeição do sonho). A minha silhueta passeia-se hoje por toda a parte, e serve, sem cobrar nada, a tudo e a todos: promove campanhas turísticas, assinala as retretes masculinas, frequenta galerias de arte e livros para crianças, na sua maioria muito maus. Os meus versos servem a todos os fins. Ouço-os nas bocas de cardeais e de maçons, nas bocas de mulheres virtuosas e de putas; nas bocas de generais e de outros comprovados canalhas. Com os meus versos se contestam políticas e se defendem as mesmas. Com os meus versos exaltam uns o futuro da língua portuguesa e outros o lamentam. Ah, o tédio de ser Pessoa. Fui-o por distracção, é verdade, como as pedras no seu sossego de pedras, e a erva crescendo e sendo erva, e passarem pássaros neste límpido céu de Verão. Tentei ser muitos para escapar de ser nenhum, e não consegui. Chama-se alma ao interior oco de uma arma de fogo, que vai da parte anterior da câmara da carga até à boca – ou seja, é por onde sai a bala. A minha alma foi sempre algo assim, um espaço oco por onde disparava os sentimentos com que atingia, ou tentava atingir, o coração dos outros. Ninguém consegue tornar-se um bom cantor, um bom dançarino, um bom pintor, um bom amante enquanto não se esquece de que está cantando, dançando, pintando ou amando. Entregar-se implica esquecer-se de si. Eu nunca me entreguei por completo à vida. Pensei-a sempre, e pensar demais a vida é não a viver. Talvez tudo isto lhe pareça contraditório e confuso, e ainda bem. É contraditório e confuso e além disso estou morto. Bastante morto. Não exija coerência a um morto. A um morto exige-se que se decomponha o mais depressa possível, ou seja, que se desorganize. Estar morto é render-se por fim à entropia, desistir. Ah, como sabe bem desistir! Ao longo da vida preparei-me muito para a morte. Fui um campeão em desistência. Comecei, bastante jovem, por desistir do amor e da aventura; desisti das mulheres e depois da humanidade inteira (que é o que acontece normalmente aos homens que desistem das mulheres); desisti do dinheiro e da glória; desisti de uma carreira, qualquer carreira, inclusive a literária. Quando por fim a morte me estendeu a mão foi já sem lastro, sem um pensamento a prender-me, que me deixei ir. Ria-se, Ana, ria-se comigo, de todos aqueles que a criticam por ter dito que me queria ao seu serviço. Lembre a essa gente aquela outra moira que cativou Camões, sendo dele escrava, e doce e bárbara, e de como tal sujeição só favoreceu a poesia. Existe em Lisboa uma casa com o meu nome. Lá dentro há bonecos com o meu rosto, e alguns dos livros da minha biblioteca. Encontrará também todos os títulos que após a minha morte se foram publicando, tentando juntar os versos que deixei dispersos. Dir-lhe-ão que pode cantar esses versos, pois tem versos para cantar até ao fim da vida. É verdade. E não, não é verdade. Não são os versos que escrevi para si. São os versos que escrevi para si. Ah, Ana, cante você a dor que minha alma teve e será sua essa dor – não a invejo. Queria a sua alma para sentir os sentimentos meus que você com tanta verdade canta, mentindo. Mas queria-a, sobretudo, para os não sentir.
Crónica publicada na revista LER. Ilustração de Pedro Vieira.
«A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. — É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo. — Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto? O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! — chamava-se Chagas. Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom Padre Chagas!»
Eis o capítulo XCVII — todo ele! — de Quincas Borba (1891), o romance de longa elaboração que Machado de Assis publicou depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Presta-se fácil a exemplificar o cepticismo ou o pessimismo que décadas de tradição imputaram à obra machadiana; entretanto, algum candidato a integrar a ortodoxia actual, em lhe calhando o passo no exame de admissão, pegaria do charuto e discorreria sobre o comportamento impiedoso das elites brasileiras e a não menos impiedosa, posto obscura, crítica machadiana. É a desgraça da fortuna crítica de Machado de Assis: quando os críticos não estão ocupados a demonstrar-lhe a genuína «brasilidade», julgam valorizá-lo como mestre no desmascaramento da mesquinhez e da maldade humana. A ironia reina, mas é vulgar: para uns, ironia moralista, que castiga o vício na dobra de uma oração subordinada; para outros, ironia ideológica, que finge agradar à classe dominante para melhor a denunciar. Mas o que se obscurece é o súbito da interrupção através da qual o «contozinho» e respectivo comentário irrompem num curso já orientado para outra finalidade. Ironicamente, com a ironia, figura fácil, obscurece-se o principal, que é o cómico. O cómico é coisa que se apresenta e de apresentar: vive do aparecimento, súbito e inesperado, característica que partilha com os fantasmas e os sismos. Daí que, nos livros de Machado, seja antes do mais uma peripécia de composição: o capítulo que acaba de repente ou nem chega a começar, o capítulo vazio ou que sem propósito legível, o capítulo que integra a sequência do passo que a interrompe. Brás Cubas dizia de um dos seus capítulos de meia dúzia de linhas e aliás na última delas: «Mas este capítulo não é sério.» Nenhum capítulo é sério quando o movimento da composição permite e até produz o enxerto de histórias como aquela do incêndio e do charuto. Ali, o efeito da interrupção não depende da inteligibilidade da sequência que integra nem da inteligibilidade da história nela inserida: depende do inesperado e do despropósito. Trata-se de perceber a piada, no preciso momento do seu aparecimento, sem recordar o que ficou e sobretudo sem querer saber do que está para vir. O inesperado da interrupção torna-se cómico quando não precisa de nenhum propósito. Há, aliás, outra passagem do romance que esclarece isto. Sofia vê cair o carteiro que lhe trouxera uma carta e desata a rir. O narrador concede que o riso era inoportuno e contrastava com a noite mal dormida, o desassossego, o medo de ser difamada; mas afirma que, se leitora o não entende, é porque, «senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro». E remata: «Às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja — um nada.» É uma das melhores descrições do modo cómico do capítulo na estrutura dos livros de Machado. O cómico machadiano é decerto irónico: o que através dele se diz não é alguma coisa que é necessário dizer, é o exemplo de alguma coisa que é possível dizer. E por isso também é filosófico: qualquer coisa se pode dizer, mas é sempre certa coisa em vez de outra, contra outra ou excluindo outra, estando na própria escolha do que se exclui o cerne singularizador da ficção. Voltemos ao «contozinho». Contado para ilustrar a utilidade e a necessidade das catástrofes, o narrador retira dele outra exemplaridade, a do propósito com que o padre Chagas a contou, duplicando a piada da história com a piada do comentário. A brincadeira consiste em presumir um texto original e sugerir que o padre o redescreveu com o fito de veicular a ideia consoladora de que «ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros». Ora o padre pode ter determinado a causa da situação, mas não extirpou dela o escárnio. A bem dizer, tornou-o até mais cruel, sendo mais improvável, mais inesperado, porque alheio aos cálculos de algum sujeito. A inconsciência do bêbado acaba mais aterradora do que a suposta crueldade do sóbrio… Dir-se-ia então haver uma oposição entre o escárnio original — ou natural: «a natureza é às vezes um imenso escárnio», escreve Brás Cubas a respeito da sua Vénus coxa — e o propósito, afinal baldado, de o redescrever de acordo com alguma explicação consoladora. Ora o cómico machadiano abunda em explicações, porém subtrai-lhes o propósito consolador. Pelo contrário: detecta e realça discrepâncias e incongruências, acasos e acidentes, e deixa a nu a falta de finalidade. Não formam, essas explicações, uma filosofia — são genuínos despropósitos, a valorizar nessa mesma qualidade. O mais conhecido deles, a Pandora que aparece no delírio de Brás Cubas, é a paródia negra de todas as figuras providencialistas, incluindo o intelligent design: mãe e inimiga, causa o sofrimento e o desejo de viver. Os romances de Machado não se ocupam do homem brasileiro nem da «natureza humana»: são inquirições da modernidade. Inquirições dum espírito antimoderno, no sentido em que o definiu o americano Marshall Berman, num livro luminoso, All That Is Solid Melts into Air (1982): «Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até ao nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, que, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista antimodernista, a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia.» Partilhando, então, a desconfiança em relação ao progresso, ao sentido, à ciência, Machado percebe a liberdade de redescrever a vida em novas condições, mas recusa radicalmente a consolação da inteligibilidade. O cómico é essa recusa: o cómico machadiano, além de antimoderno, é antitrágico. A sua expressão mais radical é a encenação de uma tragédia no subtil palco que a destrói implacavelmente: o extraordinário Dom Casmurro, o romance em que Bento Santiago, autor ficcional e autobiógrafo, procurar ordenar os capítulos da sua vida. O erro de Bento Santiago tornado Dom Casmurro não foi o ciúme, nem a suspeita associada, mas a fraqueza que não lhe deixou resistir ao trágico. A mais de meio do livro, Bento Santiago desata a escrever como se, no repertório das histórias, não houvesse para ele senão uma história possível, a trágica. O resultado é idêntico ao do padre Chagas: sozinho, sem autoridade que lhe confirme a história que elaborou, por essa via tornada mero exemplo de história que é possível contar, e a sua aventura de escrita mero exemplo de um modo, um mau modo de usar a liberdade de redescrever as histórias da própria vida, acaba com um simulacro de tragédia, para sempre incapaz de saber o que se passou. Fica o livro, claro: que se apresenta - e escarnece, o brejeiro!
Texto publicado (numa versão ligeiramente maior) na edição de Setembro da revista LER, assinalando o primeiro centenário da morte de Machado de Assis. Ilustração de Pedro Vieira.
Dossier especial e obrigatório sobre o centenário no Estadão.
Quando nos começamos a esquecer de um assunto, há uma comemoração: artigos, livros, exposições. É útil para muitos factos e figuras, à falta de melhor mecanismo. É o caso da história da escravatura, que não se sabe quando começou (talvez logo à saída do Paraíso), mas que não acabou. Em 2007 celebrou-se o bicentenário da abolição do tráfico negreiro pelo Reino Unido, no século XVIII o maior responsável pelo mesmo, mas que no século seguinte o proibiu e fez com que outras potências marítimas seguissem o exemplo. Além de argumentos morais, religiosos e económicos, os britânicos usaram a armada mais forte do mundo, apesar disso só eliminando uma percentagem baixa do tráfico no século XIX. Os EUA acabaram com a escravatura interna após a Guerra Civil e o Império do Brasil pôs-lhe termo oficialmente em 1888. As consequências desse sinistro comércio, e do «modo de produção» a que se destinava, não acabaram de repente por via legislativa e acções de polícia. Basta observar algumas sociedades americanas, principais destinatárias da hemorragia a que a África foi sujeita (tendo a procura estimulado a colaboração de reis e chefes locais), para verificar diferenças de estatuto social e político em que ainda se repercute a escravatura, muito depois de proclamada a igualdade jurídica. Mas a mudança nas instituições e práticas britânicas a partir de 1807 abalou fortemente um sistema em que, até 1838, as colónias inglesas das Caraíbas tinham uma das maiores concentrações de escravos das Américas. Até então, europeus e americanos brancos tendiam a achar natural a existência de escravos nos seus países e colónias. Isto e muito mais é narrado por James Walvin (da Universidade de York) em Uma História da Escravatura (Tinta-da-China, 2008, tradução de A Short History of Slavery, 2007). Acentua o papel das campanhas abolicionistas, mas percorre o fenómeno desde a Antiguidade «clássica» e a Idade Média, fala da escravatura no islão (o que é raro, mesmo em capítulo breve) e documenta como objecto central o que se passou no Atlântico Norte nos séculos XVIII e XIX. No epílogo lembra que a escravatura se mantém em países africanos e asiáticos e (inflectindo a sua posição inicial de historiador) que «a Alemanha nazi» e «a Rússia estalinista do tempo da guerra» não só usaram trabalho escravo como os seus regimes assentaram largamente nele. A ignomínia do sistema esclavagista moderno, a que se associaram Estados da Europa Ocidental (na Oriental existiu outra espécie de servidão) e seus continuadores nas Américas, é exemplificada sem excessos sensacionalistas. A descrição de como os escravos eram transportados e a referência ao cheiro horrível dos navios negreiros bastam para elucidar-nos. Momentos do processo, ecos actuais e sequência comemorativa surgem no dossier que a revista África 21, com sede em Luanda e à venda em Portugal, publicou no nº 9 (Setembro de 2007), com artigos de Conceição Lima, Itamar Souza, João Carlos, Jonuel Gonçalves e António Melo. Alude a museus e «lugares de memória» em diversos países, sobretudo na África Ocidental, em que o passado português não pode ficar bem. É o caso do memorial na ilha de Gorée, no Senegal. É forçoso notar que os discursos africanos sobre a escravatura costumam limitar-se aos crimes europeus, omitindo a acção de países muçulmanos, «árabes» ou não, no comércio negreiro e na servidão em geral. A escravatura, anterior ao islão, expandiu-se com este, como observa Walvin, e em vastas áreas manteve-se até ao século XX e mesmo XXI (a Mauritânia só a aboliu em lei de Agosto de 2007). Marc Ferro, em pelo menos dois livros, já comentara a frequente omissão de que o tráfico de negros para o mundo árabe precedera de sete séculos o iniciado por europeus no século XV. Livros como White Gold, de Giles Milton (2004), relatam o comércio magrebino de escravos europeus brancos e de africanos negros, até ao século XIX. As capturas chegavam a ser feitas no litoral da Irlanda (ou na nossa ilha do Porto Santo). Mas o estudo mais surpreendente, amplo e actualizado é porventura o do antropólogo e islamólogo Malek Chebel, L’Esclavage en Terre d’Islam (Setembro de 2007), sobre «um tabu bem guardado». Essas obras não são o reverso da medalha referida pela competente síntese de Walvin; são o resto dela.
Crónica publicada na edição de Setembro da LER. Ilustração de Pedro Vieira.
Uma entrevista com Peggy Whitson, primeira mulher a comandar a Estação Especial Internacional (ISS), despoletou-me da memória o recente convívio aqui na Brown em casa de Ruth Simmons (que também vê com frequência atrelado ao seu nome o designativo de «primeira mulher negra reitora de uma universidade Ivy League»). Era festa para celebrar os doutorandos honoris causa deste ano. A simplicidade digna, mailo desconcertante à-vontade desses encontros, não deixam nunca de me impressionar, a mim nado e criado no formalismo cinzentão lusitano, recuperado depois do 25 de Abril em novos moldes, é certo, mas ressuscitado para durar. No laudatório dos honorandos por um membro da universidade, e nos agradecimentos daqueles, sempre o humor put down e self-deprecating. Tudo em tom chão, como na referência ao trabalho de Shih Choon Fong, pioneiro em Engenharia Fractal – «o que quer que isso seja», o apresentador a acrescentar – e depois o honoris causa, hoje reitor da National University of Singapura, a explicar que em criança ficava muito triste quando se lhe quebravam os brinquedos e, por isso, passou 15 anos na Brown a investigar o problema. Ou Robert Redford, laureado pelo seu papel de defesa do ambiente, ao chegar-lhe a vez de agradecer, admitindo não saber falar em público porque todas as frases dos filmes que o lançaram nos olhos do mundo foram escritas por outros. Chegou a vez da geofísica planetária Maria Zuber, antiga aluna da Brown, hoje investigadora no MIT e responsável por um projecto que faria aterrar uma nave em Marte no dia seguinte. Falou das lutas íntimas por que uma mulher passa quando tem filhos pequenos e quer ao mesmo tempo manter uma carreira científica a exigir entrega incondicional. Que um dia, atormentada, à mesa com os filhos lhes pôs a questão: ficar mais tempo em casa ou continuar a dedicar-se à carreira científica. O mais novo saltou logo: «’Tás louca! Na minha escola eu sou o único com uma mãe que dispara raios laser para o espaço!»
Esta crónica ia prosseguir no tema da mulher na ciência, mas também pode legitimamente enveredar por outro rumo, como o de continuar com histórias de doutoramentos honoris causa de que me recordo. Há muitos anos foi a vez de Mário Soares. O único português até agora, se não incluirmos o luso-descendente Craig Mello, Nobel de Medicina no ano passado e ex-aluno. A universidade quis reconhecer o papel de Mário Soares na consolidação do processo democrático em Portugal. No mesmo ano, Stevie Wonder ganhou um honoris causa em Música. No colorido e alegre cortejo College Street abaixo, Stevie Wonder e o nosso ex-Presidente, ambos com a beca da Brown, barrete e tudo, caminharam de braço dado, o cantor cego completamente entregue à confiante firmeza de Soares. No outro dia, o Providence Journal trazia, em parangonas e na primeira página, uma fotografia dos dois.
Eu estava de saída para Lisboa dali a pouco e fui à redacção do jornal indagar se me cediam uma cópia. (Eram tempos arcaicos, pré-internéticos, quando tudo tinha de ser em papel e por mão própria ou correio postal.) Sim, senhor, com muito gosto, autorização plena para reproduzir a dita. Levei-a para Lisboa e fui oferecê-la a amigos no Diário de Notícias, onde eu era então colaborador regular, levado pela mão do Mário Bettencourt Resendes (coincidência que, como é óbvio e o leitor acredita piamente, nada tinha a ver com o facto de sermos patrícios da mesma ilha dos Açores). Dias depois, saía em destaque na última página, creio que com honras de «foto da semana». E não demorou muito para eu receber em retorno uma boca, que rodou célere entre a má-língua portuguesa – a legenda a incluir pelo jornal devia ter sido simplesmente: «Um cego a guiar outro cego.»
Injusta, muito injusta mesmo. Mas – convenhamos - uma boa e bem portuguesa piada, autêntica, made in Portugal, na melhor tradição do nosso escárnio e mal-dizer, em que somos mestres com o calo de 800 anos de experiência.
Pena não haver comprador para essa nossa produção.