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LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

Primeiras leituras

Em Abril, o portal Casa da Leitura pediu-me que escolhesse 10 «livros da minha infância» e explicasse, a curto prazo. Não dei a resposta de Bartleby («I would prefer not to») mas pensei: «Por que é que não me perguntam coisas que eu saiba?». Mas se alguém queria saber isso, talvez eu próprio devesse sabê-lo. Respondi mal. A minha infância foi há muito, nem sei quando acabou. Vasculhando no armário grande do passado (mapas, história e arqueologia interessam-me desde criança) esqueci os 10 livros, e de repente a lista enorme embaraçou-me pela impressão do «snob a mostrar o que leu»; sei que na Web escapamos à ditadura dos caracteres, mas outros limitavam-se a 10 livros ou menos, justificando laconicamente. E porquê dez? Até aos 15 anos, convencionando que a infância acaba aí, não há um top ten, mas 10 livros não era muito para a minha geração liceal e as contíguas. Para complicar, os livros da infância incluíam vários de que não gostara ou esquecera. Aceito que um inquérito dê um número indicativo e respeite uma noção pessoal de infância. Mas a resposta foi difícil. Não li «os Cinco» nem «os Sete», não quis uma lista canónica, com A Ilha do Tesouro, Salgari, O Romance da Raposa, O Principezinho, Robinson, Gulliver e outros estimáveis. Lera Os Três Mosqueteiros (e vira o filme), mas preferia O Conde de Monte Cristo (e vi o filme). O trauma de no liceu termos tido de resumir cada capítulo d’A Morgadinha dos Canaviais e d’As Pupilas do Senhor Reitor, arredara Júlio Dinis, e não apreciara os trabalhos forçados n’Os Lusíadas. Tinha de excluir Horizonte Perdido de James Hilton e Shane de Jack Schaefer (por sorte lidos antes de ver os filmes, e embora não se deva comparar filmes com livros, o certo é que estes eram bem melhores), e livros de Maugham, pois lera-os durante o secundário mas após a infância, o mesmo acontecendo com O Conde de Abranhos e Os Maias. Só conheci Astérix e Corto Maltese no fim da adolescência. E muitos «livros» da infância, precoce ou tardia, tinham sido revistas de BD como o Cavaleiro Andante e séries de aventuras como O Coyote, de J. Mallorquí.
A minha infância e adolescência foram alheias à ideia de dever ler isto e não aquilo, ou primeiro isto e só depois aquilo. Não segui um plano de leitura. Segui a curiosidade, as sugestões e a aparente desordem pela qual o meu pai arrumara numerosos livros, alguns em locais fixos e nem sequer na mesma sala: obras de Verne, as colecções «Vampiro» e «Miniatura» até quase ao nº 100, Eça de Queirós ou a História de Portugal «de Barcelos», ocupavam estantes distanciadas. As obras de Maurice Leblanc, que preferíamos a Conan Doyle, estavam reunidas até começarem a desaparecer, passando eu a comprar as que vi em Lisboa. Para os policiais não fora necessário incitamento. Sem qualquer insistência, os meus pais convenceram-me a ler Os Maias (de Eça líamos no liceu A Cidade e as Serras; de Pessoa a Mensagem). Antes disso, o meu pai aliciara-me para livros de Verne, para Deuses, Túmulos e Sábios de Ceram e outros que li por gosto; aos 16 ou 17 anos deu-me uma biografia em francês, Mussolini, de Max Gallo. O Dr. Francisco Burgos, professor de Literatura Portuguesa, conseguiu que eu e outros gostássemos das cantigas de amor e de amigo (cujo estudo era árduo) e do Pessoa ortónimo, do qual passámos espontaneamente a Álvaro de Campos e Manuel Bandeira, seguindo-se Drummond e João Cabral. Já em Lisboa para estudar (pouco) Direito, li o resto do Pessoa disponível, a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa encontrada na Bertrand em fins de 1965, etc. As leituras de então eram decididas por mim (salvo quanto a parte dos livros de Direito) mais do que pela família ou o ensino. Li Mau Tempo no Canal por causa de uma açoriana. Li Notas Contemporâneas porque um colega me lera passagens da correspondência de Eça com Pinheiro Chagas, interrompendo o nosso estudo de uma sebenta jurídica; A Estrada do Tabaco porque o meu cunhado mo sugeriu; Scott Fitzgerald (O Grande Gatsby, Terna É a Noite, Belos e Malditos) porque a minha irmã trabalhava numa tese sobre ele. Encontrei Borges e outros n’O Despertar dos Mágicos de Pauwels e Bergier. Por que li esse já não sei, mas fui feliz nas primeiras leituras (em 1968 devo ter entrado nas segundas) e, até hoje, nunca saí inteiramente delas.

 

Crónica publicada na edição nº 81 (Junho) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Paz, Fuentes e Outros

Fui a Valência entrevistar Octavio Paz. «Uma experiência chave foi a sua visita a Espanha em 1937, onde assistiu ao II Congresso Internacional de Escritores, uma iniciativa do Komintern organizada por Pablo Neruda. Embora na sua juventude tenha lido muita literatura anarquista, Paz abraçaria mais tarde o marxismo, e paulatinamente acabou por repudiar a tirania de Estaline.» Citei a página 20 de Octavio Paz y la Poética de la Historia Mexicana, de David A. Brading (Fondo de Cultura Económica, México D.F., 2002, reimpressa em 2004). Fui a Valência com o objectivo, entre outros, de entrevistar Octavio Paz. Cheguei com 50 anos de atraso. Apesar disso, Paz estava lá. Ele ainda era vivo, eu ainda era novo. Abordei-o, trocámos frases breves ao longo de alguns dias, à entrada ou à saída do elevador do hotel onde ambos estávamos para o congresso comemorativo do que se realizara na mesma cidade, meio século antes. Mas não houve entrevista. Adiava sempre a conversa para o dia seguinte. Viera de longe, adormecia tarde («Los españoles no duermen!», queixava-se; não sei a que propósito, criticou também o tom condescendente ou depreciativo com que compatriotas seus se referiam aos índios mexicanos: «los inditos»). Além da sua amabilidade, ficou-me como consolação duvidosa o facto de não ter dado entrevistas a representantes de outros jornais (de Portugal só lá estive eu). O que escrevi então, já em Lisboa, não era sobre Paz, era sobre a guerra («civil», e de Espanha) e a comemoração, muito tensa, julgo que sem franquistas mas seguramente com estalinistas, que um congresso fez de outro, 50 anos depois.
Mais tarde, pensando na recusa octaviana de me dar uma entrevista, mesmo curta, e comparando-a com outras circunstâncias (quantas vezes um jornalista, por motivos variados, se furta a entrevistar um escritor, mesmo que o admire, pedindo ou não desculpa ao próprio, ao editor e às relações públicas do segundo), percebi que Paz estaria legitimamente pouco disponível para ser entrevistado por portugueses. Que livros dele, entre nós, tinham sido traduzidos? Que eu soubesse, nenhum (salvo o pequeno ensaio Fernando Pessoa: o Desconhecido de Si Mesmo, que graças a José Fernandes Fafe fora editado em 1980 pelas Iniciativas Editoriais num livrinho quase plaquette, e uma Antologia Poética 1935-1975 traduzida pelo saudoso amigo Luís Pignatelli para a Dom Quixote, 1984). Hoje, mais de 20 anos depois desse episódio e mais de dez após a morte de Paz (1914-1998, Nobel da Literatura em 1990), pouco mudou. Sim, houve mais alguns textos traduzidos da sua imensa obra. E então? Eu, inocente representante do desinteresse português, voltaria a ter o mesmo pouco à-vontade (mesmo assim insistente) e ele um idêntico alheamento.
Infelizmente, a indiferença portuguesa por uma grande literatura, a mexicana, não se limita ainda hoje a Paz. Mesmo de Carlos Fuentes, menos jovem mas vivo (tem só 80 anos e quase não se notam), que é ainda do tempo em que para aparecer nas letras mexicanas era praticamente indispensável ser patrocinado por Paz, não vejo em Portugal edições por aí além de várias obras importantes. E, traduções à parte (boas ou não), para encontrarmos livros seus precisamos de sorte ou (o que vem a dar no mesmo) do acaso. Foi assim que encontrei, na livraria de Lisboa onde se encontram, mesmo em quantidade e qualidade muito insuficientes, edições em espanhol, La Región Más Transparente, de Carlos Fuentes, impressa em Novembro de 2008 para a Alfaguara, sob os auspícios da Real Academia Espanhola e da associação que a mesma tem com outras vinte e uma que cultivam a língua castelhana, revista pelo autor e incluindo textos de outros sete, 750 páginas encadernadas, importado, e por 11 euros em Portugal... É a cultura, distraídos (ou ausentes), mas é também a dimensão enorme do idioma escrito e falado que invoquei sob o nome do México, a pretexto da embaixada deste à Europa, no último Salon du Livre de Paris, 13-18 de Março, lembrando as por mim esquecidas «Belles Étrangères» ali dedicadas ao mesmo país em Março de 1991. Anunciemos, em Paris também, o 5º Salon du Livre d’Amérique Latine, na Cité Internationale des Arts, de 14 a 17 de Maio próximo. E marquemos encontro para Junho, mês em que desejaria explicar melhor os motivos por que gostava de ter chamado a esta crónica «O ano do México».

 

Crónica publicada na edição nº 80 (Maio) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Casar com o outro

É mais grave apedrejar mulheres até à morte ou destruir os Budas de Bamyan? Nem a UNESCO defenderia a segunda hipótese. As religiões monoteístas reveladas acham bem mais grave o primeiro caso. Mas é preciso entrar no sinistro campeonato de escolher entre crimes irreparáveis? A nata dos colunistas azedou, agitando-se com frases do patriarca de Lisboa e fixando-se nos casamentos de portuguesas com muçulmanos. Opinion makers locais reagiram de modo mais desabrido e imprudente do que vozes islâmicas, que desejam harmonia com vizinhos de outras crenças ou nenhuma. Mas uns e outros devem saber o que se passa em países islâmicos ou nos europeus onde o comunitarismo segregacionista prevaleceu sobre a integração pluricultural, os valores laicos e o respeito pelo outro no quadro democrático. «Houve excessos em termos de linguagem e de preocupação» de D. José Policarpo, disse o director da revista Al Furqán, Youssuf Adamgy, que replicou com Muçulmanos Esclarecem o Cardeal D. José Policarpo. Julgo o bispo (tolerante, culto, defensor de direitos de cidadania e valores morais) menos necessitado de esclarecimento do que vastíssimas áreas em que poderes ditos muçulmanos consentem ou adoptam práticas desumanas que esses colunistas recusariam.
Em países islâmicos e outros, casamentos inter-religiosos pressupõem a conversão, verdadeira ou simulada, de um cônjuge (e há a poligamia, reservada ao homem).  Regimes democráticos têm soluções para alguns problemas de convivência. Em Estados confessionais ou onde o peso esmagador de uma religião privilegia os crentes, a «solução» jurídica, social ou familiar esmaga a parte fraca. Há tanta informação sobre isto (notícias, reportagens, documentários, artigos, livros) que é penoso invocá-la, e o alarido em torno dos comentários do cardeal é estranho, salvo na vigência da ideia de que «quem se mete com o islão, leva», e inaceitável em termos de equidade; quem se mete com o cristianismo não «leva», nem nos Estados ditos cristãos nem, claro, nos islâmicos. Que eu saiba, nem D. José se «meteu» com o islão nem Adamgy se «meteu» com o cristianismo; crentes no Deus único mas de distintas tradições religiosas e culturais, divergem. Há civilizações, quer se fale de «choque» quer se proponha «diálogo» e «aliança». Reconhecer direitos humanos universais e irrenunciáveis é outra questão, embora conexa. Se «excessos verbais» podem vir de qualquer lado, os excessos inquietantes são actos: de violência contra minorias religiosas (proibindo templos, «proselitismo» e conversões), étnicas e linguísticas; contra excluídos dos grupos que controlam o Estado; contra mulheres (em punições, indumentária, reclusão doméstica); contra testemunhos de outras culturas (mesmo extintas), reduzidos a património cultural e ainda assim destruídos; contra ateus, cristãos, democratas, homossexuais. Há muçulmanos que rejeitam tais atitudes; o islão é diversificado, a sua história teológica complexa e contraditória (por exemplo, sunitas e xiitas), os costumes variáveis. Não se trata da doutrina (sem interpretação unívoca nem a-histórica) mas de práticas actuais em ditaduras com forte peso de fanatismo, intolerância e arcaísmo. Os portugueses vivem num recanto que os protege da realidade.
Há quem veja um mundo islâmico modelar e um mundo cristão (em regra laico, indiferente ou agnóstico, com muçulmanos que não persegue) no banco dos réus como se fizesse cruzadas, reconquista e inquisição. Mas quem critica práticas opressivas pode ser acusado de «islamofobia». Quem não aceita o Profeta (livros de Rushdie, conferências do Papa, cartoons) é condenado. Deste lado não vejo felizmente quem se indigne pelo facto de os muçulmanos negarem a divindade de Cristo e os acuse de «cristofobia». Sem equidade não há diálogo político-religioso. É curioso que se insurjam contra o cardeal pessoas cujo modo de vida é incompatível com o islão. Os bem-pensantes mal informados falham no alvo e no conteúdo. Dirijam-se aos donos do mundo muçulmano. Conheçam os pensadores do islão e a realidade actual deste. Leiam Sortir de la Malédiction (Seuil, 2008; subtítulo O Islão entre Civilização e Barbárie), de Abdelwahab Meddeb, útil a muçulmanos, cristãos e outras vítimas de fanatismos. O cardeal vê dificuldades no diálogo com os que acham «que a verdade deles é a única e é toda». Quem apela também ao respeito pela «verdade do outro»? Meddeb, nem mentor nem discípulo.


Crónica publicada na edição nº 79 (Abril) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Falsos amigos

Se o telejornal espanhol diz que volta às 12h con más noticias não quer dizer que volte com más notícias. Se a Bolsa cierra con ganancias não é ganância financeira, são lucros. O espanhol diz competencia? Pode ser concorrência. Inversión é investimento. Largo é longo. Espantoso? Não, espantoso é o nosso horrível. O advogado vai ao escritório, o gestor ao gabinete? Vão ao despacho (escritorio pode ser escrivaninha), o pessoal vai para a oficina. Mas oficina para carros é taller (mecánico). Talher pode ser cuchara, tenedor ou cuchillo. Mas, porém, todavia... Todavía é ainda. E há (ainda...) aun e aún. Há comicios? São eleições (políticas). Se é assim com palavras correntes, como é que tantos portugueses «sabem» espanhol mas lêem traduções, mesmo más, e acusam os espanhóis de não saberem português? E como é que traduzem uma língua que não estudaram, de um país onde foram uns dias às compras e cujos livros e jornais não lêem? Como é que se despreza um idioma com centenas de milhões de utentes, muitos aqui ao lado (a sul para os madeirenses) e a oeste até à Califórnia? Enquanto se diz que os espanhóis não aprendem línguas e falam castelhano por aí, será sério fingir que os entendemos bem? O que é admissível na relação turística é-o menos na profissional. Por exemplo, traduzir livros e artigos. Ler traduções do castelhano dá vontade não de rir nem chorar mas de procurar o original. Quem se atreve a traduzir inglês e francês sem os ter estudado? Espanhol é que não temos de aprender... Mas convém ensinar diferenças enganosas do castelhano. Aqui, falsos amigos não são os que nós temos; são os dos tradutores. Aparecem sobretudo em idiomas parecidos com o nosso, castelhano à cabeça. São palavras e expressões cuja semelhança com formas portuguesas induz em erro, não se indo ao dicionário nem perguntando a quem sabe. Os resultados ficam sem emenda e não comovem editores de livros e jornais. A crítica desfalece e por ignorância, preguiça, espaço a menos e caridade a mais, não aponta erros. Há leitores que reagem não comprando. A sorte desses editores é que poucos livros espanhóis estão à venda em Portugal, e os leitores não se habituaram a ir buscá-los a Espanha ou encomendá-los em boas livrarias de cá e lá, ou pela Net.
Se com raras excepções os editores ficam imperturbáveis, há tradutores que se preocupam. Divulgo esforços de quem fez listas de «falsos amigos». A primeira que vi foi no artigo de Ángeles Sanz (doutora em Filologia Românica e professora de Português na Escuela Oficial de Idiomas) «Subsídio para a Didáctica do Português a Falantes de Língua Espanhola: ‘Falsos Amigos’», nº 6-7 da revista Boca Bilingüe, Consejería de Educación/Instituto Español de Lisboa, 1991. O trabalho (revisto com apoio de J. Dias Marques, leitor de Português na Complutense) inclui um elenco de mais de 300 vocábulos que levam o tradutor a cair na armadilha, a «falsa semelhança, quer fónica, quer gráfica». Mais recente contributo é o de um grupo hispano-português da Direcção-Geral da Tradução da Comissão Europeia. A partir da recolha no nº 47 (1997) de puntoycoma, boletim das unidades espanholas de tradução da CE, a cooperação de tradutores dos dois Estados produziu em 2006, corrigida e aumentada, «nova versão da lista de falsos amigos português-espanhol/español-portugués»: mais de 370 vocábulos portugueses e cerca de outros tantos castelhanos, no nº 100 de puntoycoma e no nº 23 de a folha, boletim de tradutores portugueses nas instituições europeias. A lista não se dá por terminada e pede comentários e sugestões. Centra-se na «língua geral», sem vocabulários especializados. Acolhe entradas portuguesas e equivalentes espanholas, e entradas espanholas homógrafas e/ou homófonas das nossas, com equivalências portuguesas. É de consulta fácil para tradutores de português para castelhano e vice-versa, em http://ec.europa.eu/translation/bulletins/folha/index.htm. O boletim português e o homólogo são interessantes sobre línguas da UE, debates gramaticais, terminologia, transcrição de alfabetos, novos hábitos, etc. Os tradutores prestam inestimável serviço público em áreas da sua competência e responsabilidade. Agora já não há desculpas, ou há menos.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.