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Harry Hole: a alma que despedaça o coração

 

A «descoberta dos nórdicos» é uma revolução sentimental na literatura de crime. O inspetor-chefe criado por Jo Nesbø (músico – um álbum a solo, quatro na banda Di Derre –, antigo corretor da bolsa) interpreta um papel difícil e amargo: o de um herói em busca de uma consolação que não existe. A Noruega está povoada da sua solidão e da sua melancolia em 10 livros.

 

Texto de Francisco José Viegas

 

Quantas vezes encontramos Harry Hole pelas ruas de Oslo? Só se tivermos sorte. No n.º 5 da Rua Sophie, os moradores colocaram uma pequena placa lembrando que Harry Hole «vive» ali. O seu vizinho paquistanês, Ali, proprietário de uma mercearia, não tem direito a placa, mas sem ela a vida de Harry Hole seria completamente diferente. Ao fim de cinco livros (Vingança a Sangue-Frio, O Redentor, O Pássaro de Peito Vermelho, A Estrela do Diabo e O Boneco de Neve Caçadores de Cabeças está traduzido mas não faz parte da lista das investigações de Hole), ele cabe neste retrato: magro, cada vez mais magro, mal barbeado, descuidado, frequentemente ferido por isto ou aquilo, amado e odiado na polícia de Oslo, mal alimentado, fumador e não fumador, autodestrutivo (ao ponto de afastar uma mulher que ama), com má pontaria – e alcoólico:

«– O meu nome é Harry – disse o homem numa voz grave. A fina rede de veias vermelhas do seu grande nariz indiciava muitos anos de vida longe da sobriedade. – Sou alcoólico.»

Hole vive permanentemente entre o alcoolismo e a fuga ao álcool («O lobo solitário, o bêbedo, o enfant terrible do departamento.»), ludibriando os amigos, o chefe Bjarne Møller, Rakel, a colega Beate Lønn, o psicólogo Ståle Aune – exceto a parceira Ellen Gjelten, que viria a ser assassinada, e Tom Waaler, a sua besta negra, o polícia que Hole persegue como Holmes luta com Moriarty, até à morte. Por vezes engana-os, bebendo cerveja sem álcool – ou, às escondidas, comprando água mineral –, mas há quase sempre uma garrafa que se equilibra com dificuldade na extremidade de uma mesa ou de uma noite amarga: Jim Beam, de Clermont, no Kentucky.

 

 

Ilustração de Pedro Vieira ©

 

Se Harry Hole tivesse conhecido a dupla Terry Lennox/Philip Marlowe (d’O Imenso Adeus, de Chandler) é provável que partilhasse a bebida com eles, mas não o bar, porque o álcool é a sua droga de solitário. «Harry odiava bares temáticos: bares irlandeses, bares topless, bares na moda ou, os piores de todos, bares de celebridades onde as paredes estavam cheias de fotografias de clientes regulares com alguma notoriedade.» Em quase todos foi posto na rua. Bebeu demais e foi inconveniente. O homem que em vários dos seus livros é apresentado como «o heroico polícia norueguês», especialista em serial killers (estudou com o FBI em Chicago), que matara um assassino na Austrália, que é convidado pelos programas de maior audiência em televisão, não sucumbe apenas ao álcool – há também Rakel (estiveram juntos num concerto dos Raga Rockers em 1988, mas não se conheciam na época). Rakel Fauke (filha de um «historiador amador», antigo militar na Segunda Guerra) sobreviveu a um cargo diplomático e a um casamento russo e é mãe de Oleg (a quem Harry há de oferecer discos dos Led Zeppelin e The Who).

Ao seu lado, Harry Hole consegue ver andorinhas enquanto o Sol parece tingir-se de vermelho, recortado sobre o fiorde de Oslo, e promete passar duas semanas na Normandia ou alugar uma cabana junto de um lago para ensinar Oleg a nadar. Mas tanto o trabalho como o álcool acabam por impedir seja o que for. «Nunca lhe prometera que não voltaria a ficar feito em pedaços. Nunca lhe prometera que as coisas seriam fáceis com ele.»

 

    

Às vezes, Harry leva Rakel a almoçar a Oppsal, onde vivem o pai e a irmã, Sis. Às vezes, no caminho para Holmenkollen, pensa em substituir o carro, um Ford Escort de 20 anos. Muitas vezes não toma banho e alguém o avisa de que cheira mal. Fica envergonhado e promete corrigir-se. Ou pensa em Sølvi, uma rapariga que namorou durante um verão em Åndalsnes, durante a adolescência. Uma vez, Harry quase traiu Rakel com Anna Bethsen, uma cigana, artista plástica – mas ela apareceu morta no dia seguinte a um jantar exótico. Depois, quase a traiu de novo com Vibeke Knutsen, pele branca, voluptuosa, ex-alcoólica como ele, a quem Harry diz: «Seja o que for que queres de mim, eu não tenho.» Há uma canção de Bob Dylan muito parecida. Depois, um dia, é a vez de Rakel sucumbir e passar a viver com Mathias Lund-Helgesen – mas uma noite, uma noite em que Harry estava a ouvir Franz Ferdinand em casa, ela visita-o (isso acontece no seu melhor livro, O Boneco de Neve) e a sua história pessoal da Noruega altera-se de novo, altera-se sempre até que, uma vez por outra, a realidade se encarrega de oferecer um crime de sonho a Harry: um serial killer.

Às vezes, Harry Hole sonha com as vítimas: o corpo de uma mulher decapitada e retalhada, encontrada numa floresta; o cadáver encontrado na arca frigorífica de um barco de recreio na baía de Bergen; uma mulher assassinada enquanto toma duche durante uma tarde de verão, quando a temperatura se aproxima dos 36 graus e a noite nunca mais desce sobre Oslo, a cidade que ama e que descreve ou percorre com minúcia. A sua Noruega não é um mundo organizado, como nos livros de Knut Hamsun ou no «programa ideológico» de Sjöwall e Wahlöö; pelo contrário, é uma espécie de plataforma onde se movimentam polícias corruptos, jornalistas que cedem à chantagem, gangues de nazis, praças onde se vende droga e imigrantes esperam pelas carrinhas do Exército de Salvação, arquitetos de casas de luxo, assassinos a soldo, médicos obcecados pela morte, desconhecidos que protegem o seu passado e nunca serão bem-sucedidos, ricos que se encaminham para a falência, mulheres como Ragnhild Gilstrup que constroem o seu mundo de moralidade e sexo. Nesse cenário, o Estado «de bem-estar» desapareceu há muito. Quando uma mulher pergunta a Harry Hole se ele vai beber com um grupo de amigos, ele responde: «Não tenho amigos.»

 

Publicado na revista LER, n.º133