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Bom dia, Estaline: As saudades da URSS [Svetlana Aleksievitch]

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Conta-se que, no dia em que Jossif Vissariónovich Dzhugashvili, Estaline, mandou deter Polina Jemtchoujina Molotov (e a enviou para a um campo de prisioneiros no Casquistão), altas horas da noite convidou o seu marido para lhe fazer companhia enquanto via um filme, altas horas da noite, no seu apartamento do Kremlin. Polina só voltou a ver Molotov depois da morte de Estaline, em 1953, e – apesar dos longos anos de dentenção – nunca duvidou da grandeza do Grande Líder, de cuja morte só na altura tomou conhecimento. Chorou-o com sinceridade. Apesar de Estaline ter desfeito o casal, ter arruinado a sua vida e ter exercido uma chantagem inaudita sobre Molotov, Polina continuou a acreditar que Estaline tinha sido ludibriado para tomar essas decisões – a culpa não era sua.

Esta história não é inédita. Vem, replicada, nultiplicada e adaptada, nas páginas de O Fim do Homem Soviético. Um Tempo de Desencanto, de Svetlana Aleksievitch. E não custa a acreditar nesse retrato, ou pelo menos em alguns dos retratos fornecidos pelos depoimentos orais que Svetlana Aleksievitch recolhe (método também presente na sua obra sobre Chernobyl): centenas de pessoas que viveram nos anos de Estaline, nos anos da URSS, nos anos da Perestroika, nos anos de Putin, e que agora – cada um à sua medida e cada um à medida da sua geração – olham para o período de grandeza e pacificação do comunismo como uma espécie de reflexo do paraíso diante da desmoralização dos anos pós-Ieltsin e da queda da URSS durante o consulado de Gorbatchov. Gente que tem saudades do comunismo? Sim. Exatamente. Mas essas pessoas não sofreram o bastante durante as purgas estalinistas, durante os anos do Gulag, durante os períodos das grandes fomes, da repressão de Brejnev, das filas para os alimentos, do apodrecimento de Andropov ou Tchernenko? Sim. Exatamente. Mas, para a generalidade dos depoimentos recolhidos – o livro é constituído por uma polifonia de testemunhos sobre a vida soviética e posterior –, nada se assemelha tanto a uma catástrofe como o período Gorbatchov, o homem que pôs fim ao comunismo, que devolveu aos russos a liberdade: “Querem que nós consideremos o nosso passado como um buraco negro. Odeio-os a todos: gorbatchov, chvardnadze, iakovlev – escreve com letra pequena, é assim que os odeio. Não quero ir para a América, quero ir para a URSS..”

Svetlana Aleksievitch ouve russos, chechenos, ucranianos, abcáses, quirguizes, georgianos. Mas o tom que regista é quase sempre o mesmo: “A Rússia... Limparam os pés na Rússia. Qualquer um lhe pode dar agora nas ventas. Transformaram-na num monturo do Ocidente, para despejar as roupas usadas e os medicamentos fora de prazo. A quinquilharia! Reserva de matérias-primas, torneira de gás... O poder soviético? Não era ideal, mas era melhor do que o que temos agora. Mais digno. Em geral, o socialismo convinha-me: não havia pessoas excessivamente ricas, nem pobres...”

Para quem quer compreender o “fenómeno Putin” e o seu discurso, este livro explica como os tempos soviéticos se foram tornando simpáticos aos russos, mesmo recordando-lhes os assassínios em massa de Estaline e de Lenine. Tem passagens de uma “facilidade” confrangedora, e a escrita irrita por vezes com o seu excesso de pontuação e reticências – a recolha de testemunhos fará as delícias de qualquer comunista ou ex-comunista nostálgico. Mas, fundamentalmente, é de grande utilidade para explicar Putin e o desejo de reconstrução do império. [Francisco José Viegas]

Svetlana Aleksievitch, O Fim do Homem Soviético. Porto Editora, 472 págs.

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