Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

Abstinência, disse ele

Abstinência. Esta palavra provoca erosão mental acentuada, tosse convulsa, aftas e engarrafamentos. O Papa deu o flanco ao associá-la à ineficácia do preservativo, o que possibilitou os sintomas descritos. Pois bem, falemos dela sem falar de sida. Só por falar.
Um dos mandamentos inquestionáveis dos nossos dias reza que só somos felizes e dignos se todas as bocas, pilas, pipis, rabos e mamas se relacionarem sem constragimentos de espécie alguma. Pode o Planeta sobreaquecer, podem os irmãos Castro continuar a prender poetas e jornalistas, pode o tigre da Sibéria desaparecer, pode tudo. O que não pode deixar de correr é o sexo livre. As crianças, em princípio, ainda são intocáveis, tudo o resto vai para a tosta mista.

Se esse mandamento está correcto, a abstinência sexual é uma coisa altamente perigosa, assim ao nível do penálti à Panenka. Claro que há quem diga que as doses elefantinas de antidepressivos e ansiolíticos que os povos sexualmente mais liberais engolem – os escandinavos, por exemplo – não são propriamente compagináveis  (como dizem os parolos) com a suposta felicidade orgástica alcançada à custa da supressão da abstinência. Talvez seja do frio. Ou do excesso de bacalhau fresco.
Nos hindus, a brahmacharya (castidade absoluta) é uma salada que liga a abstinência sexual à autodisciplina e à salvação. No Kangra, região do Himachal Pradesh e terra dos gaddis, é habitual ver uma ou duas mulheres – por aldeia – vestidas como homens. Usam roupas masculinas e cortam o cabelo rente. São as sadhins, forma feminina do masculino sadhi – asceta. Recusam o sexo. Assim só. E, imaginem, não é por ordem do Papa nem vivem em conventos. E, imaginem, sobrevivem.
Na louca Madrid, na movimentada Londres, ou na cosmopolita Fervença, travar a aptidão sexual será assim tão pecaminoso? Que filmes perdemos quando não atingimos os 10 parceiros mensais? Paga-se mais IRS?
Os nossos irmãos muçulmanos entendem que nos portamos como bonobos (ou pelo menos um primatologista muçulmano entende isso). Os nossos irmãos muçulmanos são um bocado chimpanzés: grande agressividade macho-macho e intensa dominação masculina sobre as fêmeas. Nós já fomos assim. Agora somos mais neuróticos: nem as crianças escapam.
Voltando à vaca fria: se um homem  desistir de ir  para a cama com a quinta parceira da semana é menos homem por isso? Se uma estudante alemã decidir que para o ano só chupará duas pilas diferentes, a sua condição político-social sofrerá barbaridades?
Os mazatecas dizem que «ficar limpo» (tsjé) dá sorte às colheitas de milho. É uma perpectiva.  E parece que essa mania é pré-colombiana, portanto anterior à cristianização. Não há milho em Londres nem em Madrid (em Fervença não digo nada) e nada me diz que o euromilhões beneficia os que disciplinam os genitais. Deve haver outra saída.
O velho Reich julgava ter descoberto a energia vital do Universo: a orgone. Essa coisa – é um bocadinho doloroso de explicar – seria libertada pela tensão orgástica; seria azul e seria a fonte da vida. Reich queria toda a gente a foder. Antes assim. Ao menos um bom motivo.
Infelizmente, do meu ponto de observação – a terceira prateleira da despensa – as coisas são mais simples. Abstermo-nos de fazer sexo sempre que nos apetece não é nem terapêutico nem moralmente elevado. É apenas normal. Passo a explicar: exceptuando os fanáticos religiosos, todos entendemos que evoluímos a partir dos macacos. Passámos a falar, a escrever, a ver cinema, a sofrer pelo Benfica; deixámos de limpar o rabo com os dedos e começámos a desenvolver teorias que justificam o assassínio em massa. Naturalmente que nos libertámos do esconso hábito de saltar para cima da nossa avó apenas porque está calor.
Resumindo: seja porque são muçulmanos, seja porque são católicos, seja porque não acreditam no Reich, seja porque não querem ficar viciados em comprimidos, descubram as vantagens de uma vida livre da publicidade a chocolates associada a mulheres nuas.
Se tal não vos bastar, pensem nisto: os gorilas são feios.

 

Crónica publicada na edição nº 80 (Abril) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.