Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

Um poema de Miguel Manso

CAFÉ CASTRO


com cigarros dando para altos janelões
com garrafas soturnas canções vazias
medito em esquemas falhos de viabilidade
financeira – são um descanso estas imaginações
diletantes e portuguesas na recuada
cidade de Budapeste

permitem chegar apenas a este lugar isolado
ao plano B: texto que o autor não
burila no interior do café

mas proponho-lhe:
esqueça tudo isto os cartazes cubanos a empregada
curiosa e loira e avance para o poema seguinte
sem grandes remorsos

evitará demorar-se num desenho de nuvens
no tecto de um quarto (qual?)
festejar o fim de nenhuma vindima
aperceber-se do erro juvenil que é fechar um poema
com a palavra morte
sobretudo não lhe falarei de Walt Whitman
ou David Beckham

mas depois, peço-lhe
atrase-se outra vez suspenda por um momento a leitura
num desses gestos vazios: coçar a cabeça
coçar o queixo

espere que este autor recupere de novo terreno
e partamos os dois para baixo – haverá outro sítio? –
para o poema seguinte


Miguel Manso, in Quando Escreve Descalça-se, ed. Trama

Um poema de Jorge Sousa Braga

SALMO

 

Não foi por mim que deixaste que te pendurassem na cruz 

não foi por mim

que te deixaste matar

Não foi por mim que deixaste que te insultassem e cuspissem

não foi por mim

que morreste

Ninguém se deixa matar assim

para cumprir a vontade do pai

— Pai Pai faça-se a tua vontade! —

Ninguém se deixa matar assim

porque um dia alguém se lembrou de oferecer uma maçã

Não sei quantas maçãs já me ofereceste

sem que um anjo com uma espada de fogo viesse para nos expulsar

do nosso apartamento de três assoalhadas

Não foi por mim que tu morreste

e ressuscitaste ao terceiro dia

É uma herança demasiada pesada

para se deixar a alguém

que só viria a nascer dois mil anos depois

e cujo único pecado foi nascer

Não foi por mim nem por ti nem por ninguém 

que tu morreste

e continuas a morrer todos os dias

Há quem não saiba fazer outra coisa senão morrer 

e voltar a morrer

Nem a vontade do Pai te serve de álibi

Não foi por mim que tu morreste

embora eu seja capaz de morrer por ti 

 

Jorge Sousa Braga, in O Novíssimo Testamento, ed. Assírio & Alvim 

Um poema de Inês Fonseca Santos

Wedding march

Felix Mendelssohn

 

A infelicidade engorda mais

do que vinte tabletes

de chocolate Regina.

Mesmo partida aos quadrados

e embrulhada em prata

para disfarçar,

tem mais calorias. É um veneno,

a infelicidade. Matou uns quantos 

pelo caminho e mesmo assim

tem prosseguido ao longo dos séculos

engolindo sulcos de tempo e

lamelas de comprimidos. 

 

Infelicidade, por seres minha, 

tenho-te algum respeito.

Gostava de mandar-te para. Mas

é tão longe que, temo, 

sentir-me-ia sem ti só

e, pior, infeliz. 

 

Sigo. 

De braço dado contigo.

Primeiro, pelo adro fora. 

Depois, pelo jardim fora. 

Qual paraíso. 

Não, isso não chega: sigo contigo

pelo universo; cubro

chineses, paquistaneses, neozelandeses

com o teu manto diáfano

de choro. 

E é sempre contigo,

minha puta, que partilho

a bandeja das recordações;

é sempre contigo, minha puta fiel,

que digo, num sorriso minúsculo e muito tímido:

hoje o lanche é chocolates.

Come chocolates, pequena. 

 

Porque, sabes?, 

querer ser feliz não é pecado. Mas

infelizmente já passou o prazo. 

 

Inês Fonseca Santos, in Mixtape, ed. Do Lado Esquerdo 

Um poema de Maria Sousa

podemos cantar um canção os dois

a valsa da matilde do waits

a voz do vinagre onde o álcool se transforma

em som

algures no nosso oeste

cactos e bagaço

o blue valentine na kentucky avenue

uma lágrima numa longa

noite sem fim

porque esperamos?

não sei

juro que não sei sentada na berma

já tenho doses de noites a

mais

de esquinas e portas

de adeus em adeus

elas não suportam a separação

não choram mais porque secaram

i never talk to strangers

o som da cidade

fica restabelecido e já não tenho horas

o relógio parou

e eu faço um gesto obsceno

e desapareço

 

Maria Sousa, in Postais Tristes, ed. Do Lado Esquerdo  

Um poema de Nuno Moura

fico angústia

(a misteriosa quietude é afinal a passadeira de peões,

na rua em frente, sempre desocupada)

mas não te posso mudar a rota

até que choques contra mim

(a força das direcções contrárias leva-nos

aos dois para trás, voei um bom bocado

com a tua cabeça no meu peito)

 

de qualquer modo e se quiseres falar sobre isso,

traz a linguagem baixinho

estarei no bar esmeralda, como sempre,

segue o carreiro das pedras brancas

 

Nuno Moura, in Os Livros de [...], Mariposa Azual, 2000 

 

Um Poema de Camilo Pessanha

INTERROGAÇÃO 

 

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

Camilo Pessanha, in, Clepsidra, 

Um poema de António José Forte

AINDA NÃO 

 

Ainda não há dinheiro para partir de vez

não há espaço de mais para ficar

ainda não se pode abrir uma veia

e morrer antes de alguém chegar 

 

ainda não há uma flor na boca

para os poetas que estão aqui de passagem

e outra escarlate na alma

para os postos à margem 

 

ainda não há nada no pulmão direito

ainda não se respira como devia ser 

ainda não é por isso que choramos às vezes

e que outras somos horóis a valer 

 

ainda não é a pátria que é uma maçada

nem estar deste lado que custa a cabeça

ainda não há uma escada e outra escada depois

para descer à frente de quem quer que desça

 

ainda não há camas só para pesadelos

ainda não se ama só no chão

ainda não há uma granada 

ainda não há um coração 

 

António José Forte, in Uma Faca nos Dentes, ed. Parceria A.M. Pereira

 

Um Poema de Bénédicte Houart

com os direitos de autor
do meu primeiro livro de poesia
comprei um m&m amarelo
(amendoins cobertos de chocolate)
duvido que alguém tenha saboreado os meus poemas
com tanto alarido

com os direitos do segundo
comprei dois m&ms
fiquei abundantemente contente e 
de queixo bem lambuzado
como convém

cada m&m lembrava-me o álvaro
que dizia, e passo a citar
come chocolates, pequena, e
eu, citando novamente,
comia chocolates, pequenos

com os do terceiro
que ainda não escrevi
já me cresce água na boca
reservei m&ms na mercearia
e pus a boca em pause
embora muito a contragosto

bem vejo como este poema é prosaico
as minhas desculpas
os direitos de autor não dão
para mais metáforas do que isto

(e, de resto, ele tinha razão, o álvaro
o mundo é uma gigantesca pastelaria
onde uns comem, outros veem comer)

 

Bénédicte Houart, in Aluimentos, ed. Cotovia 

Um Poema de Golgona Anghel

 

POETA NA PRAÇA DA ALEGRIA: 

 

Não sou infeliz. Não, não me quero matar. 

Tenho até uma certa simpatia por esta vida

passada nos autocarros,

para cima e para baixo.

Gosto das minhas férias 

em frente da televisão.

Adoro essas mulheres com ar banal

que entram em directo no canal.

Gosto desses homens com bigodes e pulseiras grossas. 

Acredito nos milagres de Fátima

e no bacalhau com broa. 

Gosto dessa gente toda.

Quero ser um deles. 

 

Não, não guardo nenhum sentido escondido. 

Estas palavras, aliás, podem ser encontradas

em todos os números da revista Caras.

A ordem às vezes muda. 

Não quero que me façam nenhuma análise do poema.

Não, não escrevam teses, por favor. 

Isto é apenas um croché 

esquecido em cima do refrigerador. 

 

Obrigado por terem vindo cá para me beijarem o anel.

 

Obrigado por procurarem a eternidade da raça. 

Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça. 

 

Golgona Anghel, in Vim Porque Me Pagavam, ed. Mariposa Azual 

Um poema de José Carlos Barros

NÃO INVENTES

 

Não venhas cá com merdas. Não inventes. 

Não olhes nos meus olhos. Sai apenas. 

E poupa-me aos discursos eloquentes

e às farsas do adeus. Não faças cenas. 

 

Não digas que lamentas ou que a vida

às vezes é assim: que tudo esquece; 

que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.

Repito, meu amor: desaparece. 

 

E leva o que quiseres de tudo quanto

um dia suspeitámos partilhar:

os livros, as esculturas em pau-santo,

os discos, os retratos, o bilhar. 

 

Não deixes endereços. Por favor:

eu quero é que te fodas, meu amor. 

 

José Carlos Barros, in O Uso dos Venenos, ed. Língua Morta 

Vargas Llosa apela à mobilização hispânica contra Trump

Mario Vargas Llosa pensa que a comunidade hispânica, nomeadamente nos Estados Unidos e no México, está a ser "claramente prejudicada". Em declarações à comunicação social durante a apresentação do projeto "O valor económico do espanhol", o escritor e ensaísta peruano argumentou que as línguas devem ser defendidas perante cenários de perigo, dando o exemplo do "espanhol nos Estados Unidos".

Um poema de Margarida Vale de Gato

 

INTERCIDADES

 

galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
 
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
 
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as 
pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
 
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
 
meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre as velas acesas
 
barcos.

 

Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar, ed. Mariposa Azual 

Um poema de Rui Pires Cabral

NÃO HÁ OUTRO CAMINHO

para o Vítor

 

Os poemas podem ser desolados

como uma carta devolvida,

por abrir. E podem ser o contrário

disso. A sua verdadeira consequência 

raramente nos é revelada. Quando,

a meio de uma tarde indistinta, ou então 

à noite, depois dos trabalhos do dia,

a poesia acomete o pensamento, nós

ficamos de repente mais separados

das coisas, mais sozinhos com as nossas

obsessões. E não sabemos quem poderá 

acolher-nos nessa estranha, intranquila

condição. Haverá quem nos diga, no fim

de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta?

Não sabemos. Mas escrevemos, ainda

assim. Regressamos a essa solidão

com que esperamos merecer, imagine-se,

a companhia de outra solidão. Escrevemos,

regressamos. Não há outro caminho. 

 

Rui Pires Cabral, in Morada, ed. Assírio & Alvim 

 

Um poema de José Miguel Silva

 

Eu nunca gostei de portas, sempre as vi como
um grosseiro despotismo. Não percebia por
que razão davam passagem a uns e outros não.
Rebelei-me contra elas, tornei-me arrombador.
Decidido a contestar os seus desígnios, passei
os melhores anos da minha juventude a estudar
o idioma das fechaduras. Aos poucos, alcancei
uma secreta mestria: nenhuma resistia à sedução
dos meus arames. As portas franqueadas, e não
o que atrás delas se defende, procurava. Poucas
vezes roubei. Esta alegria me bastava - introduzir
desordem na composta segurança duma casa.
Agora que penso nisso, acho que havia algo
de bárbaro nessa minha obsessão por destruir 
a ilusória placidez das fortalezas, os escudos
da propriedade, da suficiência. Porta atrás
de porta, a minha vida passou. Até chegar aqui,
a este lugar indistinto. Também nele há uma porta.
Não me seria difícil arrombá-la. Não fosse dar-se
o caso (e esse é o castigo da minha soberba)
de não saber se estou no céu ou no inferno.

 

 

José Miguel Silva, in Erros Individuais, ed. Relógio D' Água 

Um poema de Maria do Rosário Pedreira

 

Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher 

nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias

e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança

da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez

 

quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo

incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os 

trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e 

falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade. 

 

Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los 

da dor como aos filhos que não iremos ter nunca

porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão 

 

culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem

cartas mais tarde - uma ou duas para se aliviarem dessa espada.

E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem. 

 

Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, ed. Quetzal 

Um poema de Carlos de Oliveira

 

INSÓNIA 

 

Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.

Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.

Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.

Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?

 

Carlos de Oliveira 

 

Um poema de Mário Cesariny

CORO DOS MAUS OFICIAIS DE SERVIÇO

NA CORTE DE EPAMINONDAS, IMPERADOR

 

uma morte loura

simpática

acolhedora

que não dê muito que falar

mas que também não gere

um silêncio excessivo 

 

uma morte boa

a uma boa hora

uma morte ginasta      tradutora

relativamente compensadora

uma morte pedal espinha de bicicleta quase carapau

com quatro a cinco soltas a dizer

que se ele não tivesse ido embora

tão jovem         tão salino

boas probabilidades haveria de ter

de vir a ser 

dos melhores poetas pós-fernandino

 

 

vá lá      vá lá Mário

uma morte

naniôra

que não deixe o esqueleto de fora como nos casos do mau gosto

os esqueletos têm sempre um quê de arrependidos

se bem que por aí já convinha lá isso já também era verdade

 

 

o demais         demora

e

francamente

nunca será teu

 

 

vá vá vamos embora 

 

 

custava-te menos agora

e ainda ias para o céu

 

 

Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação, ed. Assírio & Alvim

  

Um poema de Manuel de Freitas

 

GENEALOGIA

Para a Céu

Tinha medo de morrer, a minha avó.
A minha mãe não, nunca teve,
e o meu pai tem desde que me lembro
um talento inato para contornar a questão.

Era um medo simples e espontâneo,
o da minha avó. Receava
não acabar o bordado infinito
e o alheamento de tudo,
com a vaga excepção do afecto.
Queria apenas encontrar a manhã,
o pequeno missal junto à cabeceira
- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».

Arrependi-me, tantos anos depois,
de julgar que a vida se podia - querendo
ou não querendo - deitar fora.
Ainda aqui estou, vivo e descontente.
Não esqueço a antiga criada (foi mais
do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me
num sorriso se eu, no fundo, desejava
a morte que a avó não queria desejar.

E poluo essas memórias, talvez
por saber que não voltarei a atravessar
com ela a rua onde mais vezes caiu,
onde era senhora distante de um mundo
acabado, vagamente aristocrático
e, por sorte, ainda sem muito trânsito.

Ninguém, mesmo que queira,
quer morrer. E, do mais, ficam-nos
vislumbres, pormenores, anotações
cujo sentido descobrimos demasiado tarde.

Não sei se a cultura ajuda. Preferia
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra de pinheiros.

Era isso.

Manuel de Freitas, in Sunny Bar, ed. Alambique

Um poema de Ruy Cinatti

POEMA DE AMOR 

 

Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar, 

tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,

nós olhando triste uma saudade imensa

num corpo de mulher metamorfoseada. 

 

Sou demasiado são para me esquecer

do tempo apaixonado que vivi nos teus braços

e bebo no teu um coração meu

adormecido no mar do meu cansaço

ou no rio das minhas secas lágrimas. 

 

Tardará muito, se é que as horas contam, 

ver-te, de novo, perto de mim, longe, 

mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto, 

um dia a menos, o da tua chegada. 

E assim me fico, rente ao horizonte,

abrigado da chuva numa cabine telefónica,

e ligo para ti - que número? - ninguém responde

do oceano que avança e retrai colinas,

o vulto de um navio, tu na amurada

acenando um lenço, ó minha pomba branca!...

 

Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva

- as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se... - 

escurecendo os teus cabelos,

ou, se preferes, a minha boca neles 

carregada de ilhas, de nocturnos perfumes

que ateiam lumes, ó minha idolatrada, 

na minh' alma inquieta um outro bater d' asas

ou num jardim um leito de flores!...

 

Ruy Cinatti, in Obra Poética, ed. Assírio & Alvim 

Um poema de Raquel Nobre Guerra

Sorrio aos mortos e enterro os vivos

como um objecto escuro

por que rodaram mãos e jeitos de luz. 

 

Vivo como se não estivesse aqui

roupa leve como na vida. 

E vou da primeira à última batida

na respiração de um pulmão doido. 

 

Lê assim

 

podia arder a uma pouca distância de ti

nessa praceta que é um poema teu

e as coisas voltariam a mim, meras, 

como o ser transportada pelos dias 

mas cairei por aqui.

 

Meu amor

 

Porta no trinco e nada nas mãos.

Há muito que é tudo o que resta. 

 

Raquel Nobre Guerra, in Senhor Roubado, ed. Douda Correria 

Pág. 1/2