A criança está completamente imersa na infância a criança não sabe que há-de fazer da infância a criança coincide com a infância a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono deixa cair a cabeça e voga na infância a criança mergulha na infância como no mar a infância é o elemento da criança como a água é o elemento próprio do peixe a criança não sabe que pertence à terra a sabedoria da criança é não saber que morre a criança morre na adolescência Se foste criança diz me a cor do teu país Eu te digo que o meu era da cor do bibe e tinha o tamanho de um pau de giz Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez Ainda hoje trago os cheiros no nariz Senhor que a minha vida seja permitir a infância embora numa mais eu saiba como ela se diz
Sabes bem que sempre preferi os sonhadores e os derrotados, tal como nunca deixei de escolher as canções mais tristes. Saltava as páginas em que se tomavam castelos e cobiçavam praças estranhas para me poder sentar esquecida à volta de uma fogueira, vendo um irmão ser traído, um exército desejar a morte por uma visão. Do pinhal de Leiria ficou-me apenas o sobressalto do vento perdido entre as árvores, o aroma ainda distante da canela que, anos mais tarde, sentiria noutro poeta. E tanto ouro do Brasil assombrou-me as noites com pesadelos de mármore e talha que nem a nossa armada de papel conseguia vencer.
Hoje em dia, Sebastião é o vagabundo mais fiel do meu jardim. Todas as tardes adormece sobre a relva, numa real indiferença aos pássaros que o saúdam ou à beleza das romãzeiras que insistem em ungi-lo de flores à falta de nevoeiro. Gosto de reis assim, cujo túmulo possa procurar em todas as capelas de uma catedral estrangeira, acendendo vela por vela até o encontrar para ti; e sobretudo de D. Miguel, com quem me cruzei na Nazaré quando fugia de um milagre que não conseguia ver, todo o mar do império cavado à minha frente. Os meus passos não se marcaram na rocha, nem a figura do rei-arcanjo recuperou esses contornos apagados à força na pedra do forte. Mas fizemos um pacto -
doravante o olhar de um sustém o outro sobre a terra. É só essa a nossa história.
Não sou capaz de estranhas paixões e amo, como muitos, o vento forte que agita a roupa estendida nas cordas, as bicicletas ferrugentas de pneus furados esquecidas em garagens e arrecadações, a água fresca que mata a sede ao mais miserável dos homens. Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz e o descuido dos pássaros no ar, ninguém ama como eu as estrias do teu ventre, a primeira casa de dois filhos. de todas as coisas prodigiosas que conheço são elas o que mais se parece com os rasgos abertos por um arado na terra crua deste mundo.
Luís Filipe Parrado, in Entre a Carne e o Osso, ed. Língua Morta
Escreve sempre que precisares de me dizer que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico. Os legumes que trouxe ontem não sobrevivem a mais do que uma geada, muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes dizer-me outra vez que nunca houve inverno, que este ano não há verão, que estamos aqui e não estamos porque não sabemos se somos nós ou se somos aquelas quatro pessoas que vão à rua
agora que encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz uma lista de compras, uma lista de desejos, anota todos os pedidos que deixaste em poemas atrasados. Escreve sempre que precisares de mais um postal com selo e carimbo. Escreve sempre que riscares na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me uma caligrafia rebuscada que não é a tua, curvas a mais que não fazias na letra d. Já não há desses manuscritos, só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los (e toda a gente sabe que nem isso é verdade). Vai escrevendo. Sempre que eu precisar, as frases podem desviar deixas decoradas, repetidas como mentiras, demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares. Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes, arranhaste sem possibilidade de cura joelhos, cotovelos e as canelas (dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance). Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas, os meus soluços nessas curvas a mais que não fazes na letra d: as tuas linhas são rectas, verticais e justas, as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes só em vez de apenas, recursos humanos em vez de resíduos urbanos. Talvez sejamos mais do que pessoas, temos tamanhos diferentes e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta onde caibas, nunca trago chaves comigo.
Margarida Ferra, in Sorte de Principiante, ed. & Etc
Sabes leitor, que estamos ambos na mesma página E aproveito o facto de teres chegado agora Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia. A magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita, Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor, Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre Apesar de nós. Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado A flor que se abrir é já um pouco de ti, e a flor que te estendo, Mesmo que a recuses Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame, A colherei.
A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.
Adoro as levadas caudalosas serpenteando por entre avencas, levando consigo pequenos blocos de terra, ensopando a terra, matando a sede a raízes que mais parecem teias de aranha cujo centro se esconde a vários palmos de distância ou longilíneas tarântulas
Adoro os verões iniciáticos, a aprendizagem de caminhos e trabalhos sob as copas densas, os banhos na represa por entre libélulas e alfaiates e o esgar de nojo quando, da ponte, se avista lá ao fundo um gato morto preso nas silvas das margens de água límpida
Adoro os invernos laboriosos, as encostas escorregadias, a lama nas botas, a misteriosa caminhada até cada courela, o gesto medieval que ceifa o talo à couve, o toucinho na salgadeira
Adoro o regresso do ruído, a chegada das crianças da cidade, adoro vê-las subir às amoreiras, as mãos miúdas confiando em nós de madeira centenária, enquanto os pais me visitam na adega, cortamos uma broa e abrimos uma garrafa de morangueiro fresco
Adoro as casulas e os paramentos na sacristia e o pó que os cobre nos meses de ausência do padre e o branco nu da capela e a pedra nua de todas as outras casas, que é da cor das folhas de tabaco secas da plantação que o Eduardo tem ao fundo do povo e esconde dos fiscais (ele que já viu mais mundo que todos os fiscais da região e trabalhou na PanAm e foi aos Estados Unidos)
Adoro as trutas apanhadas à mão e o viveiro de trutas, nossa única indústria desde que ruiu o moinho de água e só Deus sabe quanto isso me custou e custa, saber que não mais sentirei o cheiro do milho acabado de moer
Adoro as idas à mercearia da aldeia vizinha e a pouquíssima variedade de produtos que aí se encontra, como se estivéssemos em tempo de guerra ou o século XX não ousasse começar por aqui
Adoro os fogões a lenha, as enormes arcas de nogueira, os colchões de palha de milho confortavelmente concavados por décadas de hóspedes e a remota possibilidade de serem do tempo em que João Brandão, “o terror das Beiras”, se acoitou nestas casas
Adoro os audazes mergulhos da ponte metálica coberta de caganitas de cabra e as cabras e a mão desusada que as conduz e que sabe amar quando é chegada a noite ou quando é chamada a iluminar um recanto de sombra
Adoro as lamparinas e os morcegos que vêm chupar o azeite das torcidas, o cheiro das queimadas e o cheiro do tojo acabado de roçar, e as pequenas manchas roxas que as amoras esmagadas imprimem no chão
Adoro as ameaças e as benesses do céu e a certeza de que nelas se escondem todas as respostas da irrevogável vontade de Deus e adoro como uns são pais dos filhos dos outros e deixam Deus fora da questão e não pegam em espingardas
Sim, adoro esta aldeia sem caçadores em que os pardais só temem os espantalhos e os gritos que ecoam desde o outro lado das montanhas
Adoro o tio Alfredo, que espantava as almas penadas batendo com uma corda nas costas, e o primo Alfredo que trabalha tanto como quem trabalha mais e mimetiza o mesmo gesto para afugentar as dores que isso lhe dá por todo o corpo
Adoro a iniciação sexual dos rapazes, quase sempre com outros rapazes, anos antes de terem uma rapariga, o que só acontece aos doze anos e depois não quer dizer nada, que é como quem diz, fica vida fora
Adoro o orvalho desenhando folhas de plantas nos vidros das janelas e janelas nas folhas das plantas e a nitidez de todos os veios destas e de todas as veias na pele das mulheres, que nunca tomaram banhos de sol e sempre cobrem as cabeças com lenços ou chapéus de palha
E adoro-vos a vós que nunca vistes nem vereis a minha aldeia e acabais de a adotar pelo útero
Miguel Martins, Clube dos Poetas Vivos, Lisboa, 2002
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possiblidade do soco; Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho, Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó princípes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
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ESPLANADA
Naquele tempo falavas muito de perfeição, da prosa dos versos irregulares onde cantam os sentimentos irregulares. Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramago & coisas assim eu já não fico a ouvir-te como antigamente olhando as tuas pernas que subiam lentamente até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora do liceu: Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu. Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, e não caminhos de andar como dantes, chamando do fundo do meu coração.
Manuel António Pina, in Todas as Palavras, ed. Assírio & Alvim