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Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

ENSAIO || BÍBLIA: A Redoma e o Livro

 

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Texto de João Leal

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Dos arredores de Lisboa para Pitcairn, o cenário de Revolta na Bounty: a história de uma educação religiosa («uma minoria religiosa», a comunidade batista) e a forma como se constrói uma redoma a partir do seu livro essencial: «De vez em quando volto a pegar na minha Bíblia. Nunca me quis desfazer dela. É um memorial dos meus primeiros 20 anos de vida. Está usada, rasgada aqui e ali, tem muitos sublinhados e comentários nas margens. Ainda reconheço o seu cheiro. É difícil de folhear por causa de toda a humidade e quase nenhum uso na última década.»

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Foi o Pedro que me apresentou o Revolta na «Bounty». Chegadas as férias de verão, o meu irmão mais velho encetava jornadas épicas de leitura compulsiva. Ficou de tal modo entusiasmado com as aventuras do capitão Bligh e dos amotinados do Bounty que me propôs a tentativa de teletransporte para Pitcairn, a ilha deserta em que os marinheiros revoltosos desembarcaram e de cuja praia ficaram a ver o navio a arder ao largo. Para isso, deveríamos os dois concentrarmo-nos ao mesmo tempo no objetivo com o máximo de força possível durante um minuto ou dois. Alinhei, achando a ideia formidável e cheia de possibilidades. Para grande deceção dos meus 11 anos de idade, no final do período combinado continuávamos no nosso quarto, cada um na sua cama do beliche.

Se hoje em dia a internet permite saber tudo sobre a ilha de Pitcairn, sendo mesmo possível passear na ilha com o street view da Google, em meados dos anos 80 eu e o Pedro só tínhamos o livro de bolso da Europa-América, um atlas de capa azul do Círculo de Leitores e a nossa imaginação para preencher as colossais lacunas de informação. Sabíamos, por exemplo, que passados quatro anos da chegada à ilha tinham morrido sete marinheiros, os seis taitianos e duas das onze taitianas que acompanharam os amotinados. Acidentes, assassinatos, suicídio e doenças mortais haviam reduzido a comunidade a dois homens, Ned Young e John Adams, e a nove mulheres. Tentando evitar a repetição do caos e terror desses primeiros anos, os dois homens tomaram a Bíblia de bordo do Bounty como referência para o estabelecimento de ordem. Young ensinou Adams a ler a partir do livro e ambos acabaram por conseguir converter as mulheres taitianas ao cristianismo.

Os habitantes de Pitcairn estiveram isolados durante 18 anos, altura em que um navio parou por acaso na ilha para se abastecer de cocos. A tripulação do USS Topaz encontrou uma comunidade organizada e pacífica, em que as crianças eram alfabetizadas num clima de abundância. Young tinha morrido de doença 10 anos antes e Adams era o único homem. Com ele estavam 11 mulheres e 23 crianças.

Certamente que a Bíblia foi central na vida e no sucesso da comunidade, cuja meia centena de habitantes atuais é descendente dos marinheiros amotinados desse longínquo século XVIII. E é com esse nível de importância que considero esse mesmo livro na minha história pessoal. Filho de pais que se conheceram na Igreja Batista de Leiria, sei que se a Bíblia não existisse, isto é, se a comunidade batista não existisse, eu não teria nascido.

Vivi a infância com a noção de que pertencia a uma minoria religiosa. Tinha a certeza de que era um dos pouquíssimos iluminados, alguém com uma vantagem moral sobre os colegas da escola e vizinhos lá da rua. Era óbvio que na iminente segunda vinda de Cristo, sendo eu justo, seria arrebatado, deixando perplexos todos os rapazes com quem nesse momento estaria a jogar à bola. Na longínqua hipótese de morrer antes desse arrebatamento, era certo que iria para o Céu, onde me iria reunir a todos os outros evangélicos batistas, os únicos com quem Jesus estaria disposto a partilhar a eternidade.

Olhava para todos aqueles que não eram da minha família, ou da minha Igreja, como o «mundo» que eu tinha como missão ajudar a redimir do seu pecado. Tinha a noção, exacerbando uma marca comum protestante, de que a Igreja Católica era um grupo de malfeitores dissimulados e tirânicos. Era um «nós» e «eles» que me trazia uma noção perfeita de identidade: havia alguém para salvar e um adversário mais poderoso para combater. Ser um exemplo era ponto de honra. Não mentir, não agredir, ser modesto, ajudar o próximo e exercer compaixão pelos mais fracos do recreio da escola garantia-me que fazia o que se esperava de um batista e que era um menino muito especial aos olhos de Deus.

Se cá fora, entre os do «mundo», já era bom, aos domingos na igreja era ainda melhor. Se lá fora me sentia como um membro de um conjunto de super-heróis de que dependia a única salvação possível dos habitantes do planeta Terra, lá dentro, sendo o filho mais novo do pastor, sentia-me realmente especial. Todas as pessoas me amavam, apaparicavam e creio que nunca voltei a ser tão mimado de um modo tão generalizado. Para os da minha idade existia o flanelógrafo, um quadro feito de flanela no qual se colavam figuras com velcro na parte de trás para contar as histórias bíblicas. Os apóstolos, os profetas, ovelhas, camelos, anjos, pedras, a Sarça Ardente, a cruz e toda uma miríade de ilustrações que apareciam para nossa maravilha nessas versões suavizadas daquelas histórias tantas vezes tão violentas. Cantávamos, também, muito. A minha canção preferida era a que dizia: «O meu coração era preto / Mas Cristo aqui já entrou / E o seu precioso sangue / Tão alvo assim o tornou / E diz na sua palavra / Que em ruas de ouro eu andarei / Que dia feliz quando eu cri / E a vida eterna ganhei.» [continuar a ler...]

 

João Leal nasceu em Lisboa em 1973. Estudou Teologia, curso que deixou incompleto. Livreiro desde 1997, manteve (entre 2003 e 2005) o blogue «Bicho Escala Estantes». É casado, tem duas filhas e mora na vila de Sintra. Em 2011 publicou Alçapão (Quetzal), o seu primeiro romance.

 

Ler mais na edição em papel ou em e-book ou PDF.

 [Publicada na edição em papel, LER 135]

ENTREVISTA || Afonso Cruz: o artista, uma espécie de burlão

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Diziam que era «duro de ouvido» mas comprou uma guitarra e estudou, estudou até conseguir tocar, e tornou-se músico mesmo sem saber uma nota de solfejo. Para fazer filmes de animação, estudou, estudou até ser capaz de perceber em que momento as pernas do Bip Bip começam a rodar. Agora diz que perdeu a ingenuidade na leitura, porque procura entender «como é que ele fez isto» quando lê ficção. Depois de 12 anos de vida nómada em 60 países, assentou primeiro em Lisboa, depois no Alentejo, num sossego sem trânsito e com boas escolas para os filhos. A poucos metros das cadeiras onde a entrevista decorreu, visitantes entravam e saíam da Galeria de Exposições de Fotografia Afonso Cruz, o avô paterno, no interior do Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz que tem o nome de Pedro Santana Lopes. O Afonso Cruz que aqui fala tem 43 anos, escreve, faz ilustração e filmes de animação, é um dos seis elementos da banda The Soaked Lamb, fabrica cerveja e acha que é sempre possível fazer-se o que quer fazer.

 

 

Entrevista de Ana Sousa Dias

Fotografia de Pedro Loureiro

 

 

Está de férias na terra onde nasceu, a Figueira da Foz. As recordações que tem da infância têm alguma coisa a ver com a Figueira de hoje?

A casa dos meus avós, que ainda existe, fica em Buarcos, uma vila piscatória. A minha vida fazia-se entre Buarcos, junto ao mar, e a loja e estúdio de fotografia do meu avô, no centro, junto ao Casino. Eu conhecia bem a zona do centro, mas as memórias que tenho do resto da cidade são muito poucas. Só vivi na Figueira até aos cinco anos, mas vinha passar as férias grandes a casa dos meus avós, uma quinta com imenso espaço e ar livre. Depois fui viver para Lisboa e aí fiquei até ir estudar para a Madeira. Na altura só havia três escolas de arte em Portugal – o Porto, Lisboa e o Funchal – e eu pus o Funchal em primeiro, o Porto em segundo, Lisboa em terceiro. Era a possibilidade de sair de casa dos pais e de tornar-me independente.

 

No fundo, é mais de Lisboa do que da Figueira?

Sim, as minhas recordações de infância, sobretudo das férias grandes. A família do meu pai teve uma grande influência na minha vida. Eu era muito fascinado pelo meu avô e pelos irmãos dele. O meu avô era fotógrafo, o que não é uma profissão comum. Ganhou alguns prémios e a galeria de fotografia aqui do Centro de Artes tem o nome dele, o mesmo nome que tenho: Afonso Cruz. Começou a trabalhar aos 12 anos numa loja de fotografia e depois da Segunda Guerra Mundial criou o seu próprio estúdio. Contava que durante a guerra, quando não havia material suficiente, criava os seus materiais, com produtos químicos. Tinha a loja, o estúdio, fazia fotografias tipo passe, mas não andava na rua a fotografar, só o fazia por prazer. Quando eu me dava mais com ele e tinha idade para entender já ele era bem mais velho e já estava reformado ou perto disso. Fazia também fotografia aérea. A loja tinha muito historial, porque ele passava informação durante a ditadura, foi preso algumas vezes. O meu livro O Pintor debaixo do Lava-Loiças é baseado nele, porque escondeu um judeu em casa, na cozinha. O irmão mais velho era uma pessoa do regime e foi pioneiro da aviação, fez as primeiras viagens aéreas até Timor, Moçambique, Angola.

 

Como se chamava?

Humberto da Cruz. Tinha outros irmãos, todos eles muito carismáticos. Um era meio anarca, vivia num quarto alugado, gostava de escrever poesia, tocava violino e guitarra. Outro meu tio-avô era jogador de futebol mas na altura o futebol não dava muito dinheiro e então tornou-se inspetor de casinos. Não era um mau jogador de futebol, chegou a jogar no Sporting.

 

A sua nota biográfica diz que frequentou mais de 50 países. O que quer dizer «frequentar» um país?

Comecei a trabalhar em cinema de animação regularmente, em 1991, sem ser distribuir folhetos na rua, trabalhos esporádicos, e fiquei fascinado por um colega que ia sozinho para a América do Sul. Não era muito comum este tipo de viagem, as pessoas da minha idade iam a capitais europeias ou faziam InterRail, como eu já tinha feito. Viajar sozinho, e especialmente para países muito fora do circuito normal, admirou-me imenso e pensei que nunca teria coragem de o fazer. Um ano depois, comprei um bilhete para a Bolívia.

 

Porquê a Bolívia?

Sempre fui muito fascinado por nómadas, queria conhecer índios, conhecer a religião sem artefactos, sem instituições, mas também os homens sem nada, no seu lado mais essencial. Comecei a viajar nessa altura e não parei, tornou-se uma espécie de vício. Viajava três a seis meses por ano, conforme o dinheiro que arranjava no cinema de animação. Fazia animação para várias produtoras mas foi com a Anima Nostra que trabalhei mais. Não tinha encargos, tinha comprado uma casa muito pequenina de 30 metros quadrados, uma casa de porteira, baratíssima. Com todo o dinheiro que arranjava, viajava. Escolhia os países não só porque eram muito mais baratos do que viver em Portugal – no fundo acabava por poupar dinheiro por não estar cá – mas também porque eram os meus destinos de eleição. Interessava-me menos os muito parecidos com o nosso, em que as pessoas usam as mesmas marcas de roupa, comem nos mesmos Mcdonald’s.

 

Quanto tempo ficava?

Isso dependia dos trabalhos, do dinheiro que tinha. Comprava um bilhete e depois logo se via até quando dava.

 

Fez isso com mais de 50 países?

Cerca de 60.

 

Todos fora dos circuitos habituais?

Também viajei muito pela Europa, tentava começar de comboio ou de outra maneira. Na Europa, gostava mais do Leste do que da Europa Central. E como para chegar ao Leste atravessava o Centro, acabei por conhecer tudo.

 

O que procurava com essas viagens?

Coisas diferentes. Tinha que ver com as leituras, com o que ia lendo. Se lesse sobre as heresias búlgaras, gostaria de ir à Bulgária. E queria perceber como os povos vivem, como olham para a sociedade, como evoluíram as sociedades nómadas que se sedentarizaram, a religião, a filosofia, a política, como é que tudo isso evoluiu a partir de um pensamento que à partida não tinha nada a ver com o que temos de raiz.

 

As religiões são um tema que o interessa, por tudo o que já li. Como entra na religião de um povo com o qual não tem relação?

Normalmente não entro, depende das religiões. É relativamente fácil e comum numa religião animista, por exemplo, conseguir ver ou participar em rituais. Como não são institucionalizados, não têm limites tão fixos ao que se pode e não se pode fazer. É mais simples encontrar alguém que nos permita entrar, ser até iniciado. Nas religiões muito formais como o cristianismo, o islão, o judaísmo, é muito difícil entrar, ainda que gostasse, porque é uma devoção, uma dedicação a tempo inteiro. Ainda assim, entre alguns grupos e movimentos é possível. Por exemplo, é possível entrar no monte Atos na Grécia, numa península onde só vivem monges.

 

Esteve lá?

Estive lá, sim. Passar um tempo nos mosteiros, dormir com os monges, fazer uma vida de monge. Quando há jejum, temos de fazer jejum.

 

O que lhe interessa é estar mergulhado naquele ambiente?

Para mim é muito importante conversar. Quando era adolescente, adorava o Oriente, o orientalismo, especialmente o taoísmo, e só muito mais tarde fui à China, à Índia, ao Nepal, à Tailândia. Quando fui já não gostei muito, ou melhor, já não estava tão interessado no Oriente. Por outro lado, o que me desgostou mais, por culpa minha, é que não consigo comunicar. Chego à China e não consigo falar com ninguém por causa da língua.

 

No seu livro Para onde Vão os Guarda-Chuvas há, pelo contrário, há uma espécie de imersão no outro. E há um entendimento entre pessoas de diferentes religiões, cheias de preconceitos e ao mesmo tempo abertas aos outros. Foi isso que encontrou?

Encontrei todo o tipo de coisas. Encontrei pessoas completamente intolerantes, com uma visão da religião ou da política muito limitada e compartimentada, mas também pessoas que não pensam assim. Acho que isso tem mais a ver com o feitio das pessoas do que propriamente com as religiões. Também tem a ver com as circunstâncias, com o momento histórico que as sociedades passam. E tem muito a ver com a identidade, porque as pessoas têm muito medo de perder a identidade quando se abrem ao outro. Eu não sinto muito isso nem acho que seja motivo para temer. Se não tivéssemos as nossas fronteiras, tínhamos à mesma a nossa identidade, tal como o Alentejo tem a sua identidade, o Minho tem a sua e por aí fora. Não se perdeu por sermos um país. Pelo contrário, as sociedades evoluem porque se abrem aos outros, vão absorvendo as coisas boas, vão aprendendo com isso, vão fazendo uma sinopse, um somatório das melhores coisas, recolhendo ao que interessa e construindo uma sociedade cada vez melhor e mais justa, imagino eu. Mas entre as pessoas que tenho conhecido há de tudo. Lembro-me – até escrevi para o JL um conto sobre isso – de um condutor de tanques croata que era incrivelmente xenófobo, homofóbico, um ódio latente que não é necessariamente religioso. Quando lhe perguntei porque é que não era possível ele dar-se com um sérvio ele respondeu: «Porque eles são ortodoxos e eu sou católico, não há mistura possível.» No entanto, estamos a falar basicamente da mesma religião, ou pelo menos a génese é igual até ao cisma, e o cisma aconteceu por uma causa ridícula. Não há uma diferença tão grande quanto existe por exemplo entre hinduísmo e cristianismo. E no entanto eles são incapazes de se dar não por uma questão religiosa, mas por um ódio que foi criado e que existe latente na sociedade. A religião serve para expressar essa identidade e portanto esse fechamento.

 

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Onde é que entra aí a ignorância – ou o conhecimento?

Para os budistas, o pecado é a ignorância: não saber, não conhecer, não compreender. Quanto mais compreendemos o outro, mais paz encontramos nas nossas vidas porque percebemos – eu naquela situação poderia fazer igual, eu consigo compreender aquela pessoa, como é que ela age, porque me coloco no espaço do outro. Uma questão de empatia. Muitas vezes isso não acontece, por medo ou porque os vícios, tal como as virtudes, costumam andar ligados uns aos outros. Quando se é ignorante tem-se medo, chega-se ao ódio. A compreensão trará sempre sabedoria, muito mais justiça e isto não tem a ver com conhecimento. O facto de eu somar conhecimentos, ou de ser erudito, não faz de mim uma pessoa compreensiva, tolerante, sábia: faz de mim uma pessoa com muitos conhecimentos. É um processo diferente. Para mim, a compreensão tem muito que ver com ligações que somos capazes de fazer entre uma coisa e outra: isto é como aquilo. O conhecimento e a erudição puros e simples não fazem isso, estão muito compartimentados dentro do seu espaço e não se relacionam com as outras «gavetas» do conhecimento, de modo a criar esse todo harmónico que será a sabedoria. É uma questão tão antiga, até costumo brincar com isso. Heráclito tinha uma frase: «Se conhecimento e sabedoria fossem a mesma coisa, Pitágoras era um sábio.»

 

Lê muito, como transparece nos seus livros? Desde muito pequeno? Como teve acesso aos livros?

Sempre li muito. O meu pai tinha uma boa biblioteca, o meu avô também. O meu pai começou por ser fotógrafo como o pai dele, estudou fotografia na Bélgica e na Alemanha. Voltou para Portugal e arranjou emprego num banco. Acabou por ser bancário uma boa parte da vida. Deixou a fotografia mas tem o sonho de um dia montar um estúdio. A minha mãe também é bancária e é de Leiria. Conheceram-se na Figueira, onde passava férias toda a gente das terras um pouco mais para o interior.

 

Há pessoas que têm bibliotecas em casa mas não têm curiosidade, o impulso de ir procurar mais.

Acho que também é feitio. A educação é muito importante para orientar as pessoas, para limitar. Cada um de nós tem caraterísticas próprias que, usadas de diferentes maneiras, podem ser vícios ou virtudes. Podemos dizer que uma criança mente muito ou podemos dizer que é muito inventiva. Podemos canalizar da pior maneira possível o espaço que está a explorar e torná-la o Passos Coelho, ou fazer dela um ator, um escritor, um artista, que são todos uma espécie de burlões.

 

Burlões no sentido de…

Trabalham com a ficção, com coisas que não existem. A arte será sempre uma visão de algo que não existe, ou que não é tão visível assim. Quando se pintava retratos no Renascimento, havia inúmeros símbolos que representavam a alma do retratado. A matéria-prima da arte, de toda a criação, são coisas que não existem, são invenções, ficções. É preciso imaginar uma roda para que os carros não as tenham quadradas, é preciso sempre sair do lugar-comum, do sítio onde se está, e isso não existe, de certa maneira é uma mentira. Não podemos provar que existe, só imaginamos que existe.

 

O livro chama-se Para onde Vão os Guarda-Chuvas e procura perceber para onde vão as coisas que perdemos. Mas de onde é que elas vêm?

Não sei de onde vêm mas também não sei para onde vão. Esses são os grandes mistérios da nossa existência, muito difíceis de compreender, independentemente de sermos ateus ou crentes. A morte continua a ser um mistério, mesmo que para algumas pessoas seja um nada absoluto. É muito difícil acreditar em coisas absolutas no Universo e esta é mais uma delas. Além de que há outra coisa estranha: como é que existe um tempo finito se existir eternidade? Se existir um tempo infinito, o tempo finito será infinitamente pequeno, não deveria existir. O facto de sentirmos o tempo e de existirmos deveria querer dizer que o tempo não é eterno, não há eternidade. Mas nesse caso também seria muito complicado explicar isso, porque precisávamos de um princípio e de um fim. E isso é muito difícil de explicar, até porque imaginamos uma razão para o mundo existir. Ele existe porquê? Porque não existe o Nada e existe o Universo? E esta é uma das questões mais complexas de responder.

 

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Essa é a questão a que se anda sempre a tentar responder?

Eu acho que as pessoas acima de tudo tentam ser felizes e, se tiverem tempo, pensam em filosofia.

 

Como é que começou a interessar-se por filosofia? Com as leituras?

Se colocamos questões, se encontramos coisas sem sentido à nossa volta, se queremos explicá-las… Pode ser por medo do desconhecido, para tentar perceber o que aquele escuro significa, começar a moldá-lo e fazer algo desse escuro. Os livros ajudam, a música ajuda, a arte ajuda. São maneiras de nos expressarmos, de explicar o mundo, e acabamos por adotá-las como ferramentas.

 

Pode ter a Biblioteca de Alexandria à frente e não ter a menor curiosidade, olhar só para o aspeto exterior.

Eu sou filho único, passava muito tempo sozinho, isso pode ter ajudado. Mas não acho que seja só isso. Olho para os meus filhos e vejo as diferenças e as relações que ambos têm com os livros, com a maneira de conhecer o que os rodeia, e têm à partida personalidades muito diferentes. Sempre tive imensa vontade de saber como as coisas eram feitas.

 

Ler mais na edição em papel ou em e-book ou PDF.

 [Publicada na edição em papel, LER 135]

Nas livrarias: a antologia de Ramos Rosa

 Acaba de sair (edição Assírio & Alvim).


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

Os ciclistas do Goncourt

 

Foram hoje anunciados os finalistas do Goncourt. São como se segue:

- Kamel Daoud, Meursault, contre-enquête  (Actes sud)
- Pauline Dreyfus, Ce sont des choses qui arrivent  (Grasset)
- Clara Dupont-Monod,  Le roi disait que j¹étais diable (Grasset)
- Benoît Duteurtre, L'ordinateur du paradis  (Gallimard)
- David Foenkinos , Charlotte  (Gallimard)
- Eric Reinhardt, L'Amour et les forêts (Gallimard)
- Emmanuel Ruben, La ligne des glaces (Rivages)
- Lydie Salvayre, Pas pleurer (Seuil)

Fotografias exemplares, 30.

Nova fotografia de um vulcão: o casal Yves Montand e Simone Signoret

com o casal Marylin Monroe e Arthur Miller, no mesmo jantar de há dias.

Todos olham para Miller, duplamente traído.

© Fotografia de Bruce Davidson (Agência Magnum)

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