Salman Rushdie em exclusivo na edição da LER: «A nossa única reação possível é gratidão. Era o maior de nós todos.» Uma evocação comovida de Gabriel García Márquez.
Texto de Salman Rushdie
Gabo vive. A extraordinária atenção internacional dada à morte de Gabriel García Márquez e a sincera tristeza sentida por leitores de todo o mundo com o seu desaparecimento dizem-nos que os livros ainda estão muito vivos. Algures, um «patriarca» ditatorial ainda manda cozinhar o seu rival e servi-lo aos seus convidados durante o jantar numa grande travessa; um velho coronel espera uma carta que nunca chega; uma bela jovem está a ser prostituída pela sua avó impiedosa; e um patriarca mais amável, José Arcadio Buendía, um dos fundadores da nova aldeia de Macondo, um homem interessado em ciência e alquimia, declara à sua horrorizada mulher que «a Terra é redonda como uma laranja».
Vivemos numa era de mundos inventados, alternativos. A Terra Média de Tolkien, Hogwarts de Rowling, o universo distópico de Os Jogos da Fome, os lugares onde vampiros e mortos-vivos predam: esses lugares estão na moda. Porém, apesar da apetência por ficção fantástica, no melhor do microcosmos da literatura ficcional há mais verdade do que ficção. No Yoknapatawpha de William Faulkner, no Malgudi de R.K. Narayan e, sim, na Macondo de Gabriel García Márquez, a imaginação é usada para enriquecer a realidade, não para fugir dela. Cem Anos de Solidão conta agora 47 anos e apesar da sua popularidade colossal e duradoura, o seu estilo – o realismo mágico – em grande medida deu lugar, na América Latina, a outras formas de narrativa, de certo modo em reação à absoluta grandeza do feito de García Márquez.
O escritor mais conceituado da geração seguinte, Roberto Bolaño, declarou, como é sabido, que o realismo mágico «já cheira mal» e troçou da fama de García Márquez, descrevendo-o como «um homem todo satisfeito por ter sido íntimo de tantos Presidentes e arcebispos». Foi um desabafo infantil, mas mostrou que para muitos escritores latino-americanos a presença do grande colosso no seu seio era mais do que algo opressiva. («Tenho a impressão», disse-me um dia Carlos Fuentes, «de que na América Latina os escritores já não conseguem usar a palavra “solidão”, com medo de que as pessoas pensem que se trata de uma referência a Gabo. E receio», acrescentou, com malícia, «que em breve também já não possamos usar “cem anos”.») Nenhum escritor teve no mundo inteiro um impacto equivalente no último meio século. Ian McEwan comparou recentemente a sua proeminência à de Charles Dickens. Nenhum escritor, depois de Dickens, foi tão vastamente lido, e tão profundamente amado, como Gabriel García Márquez.
O desaparecimento do grande homem pôs fim à ansiedade dos escritores latino-americanos em relação à sua influência e permite que a sua obra seja apreciada de forma não competitiva. Fuentes, reconhecendo a dívida de García Márquez para com Faulkner, chamou a Macondo o condado de Yoknapatawpha do escritor colombiano e esse pode ser um melhor ponto de entrada na obra. Estas são histórias de pessoas reais e não contos de fadas. Macondo existe; é essa a sua magia. O problema da expressão «realismo mágico», el realismo mágico, é que quando as pessoas o pronunciam ou ouvem estão na realidade a ouvir ou a pronunciar apenas metade, «mágico», sem prestarem atenção à outra, «realismo». Mas se o realismo mágico fosse apenas mágico, não seria relevante. Seria pura fantasia – uma escrita em que, porque tudo pode acontecer, nada produz efeito. É por a magia ter raízes profundas no real, por nascer do real e iluminá-lo de formas belas e inesperadas, que o realismo mágico funciona. Reparem nesta passagem de Cem Anos de Solidão:
«Logo que José Arcadio atravessou a sala, um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes […] e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão.
– Ave Maria Puríssima! – gritou Úrsula.»
Algo de absolutamente fantástico está aqui a acontecer. O sangue de um homem morto adquire um propósito, quase uma vida própria, e move-se metodicamente pelas ruas de Macondo até ir parar aos pés da sua mãe. A conduta do sangue é «impossível», no entanto sentimos a passagem como verdadeira, o percurso do sangue parece reproduzir a viagem da notícia da morte dele, desde o quarto onde dispara sobre si próprio até à cozinha da mãe, e sentimos a sua chegada aos pés da matriarca Úrsula Iguarán como alta tragédia: uma mulher toma conhecimento de que o filho morreu. O sangue de José Arcadio pode e deve continuar a viver até transmitir a Úrsula a triste notícia. O real, ao ser-lhe acrescentado o mágico, ganha na verdade força dramática e emocional. Torna-se mais real e não menos.
O realismo mágico não foi invenção de García Márquez. O brasileiro Machado de Assis, o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo precederam-no. García Márquez estudou atentamente a obra-prima de Rulfo, Pedro Páramo, e equiparou o impacto que a obra teve nele ao d’A Metamorfose de Kafka. (Na cidade-fantasma de Pedro Páramo, Comala, é fácil encontrar a origem da Macondo de García Márquez.) Mas a sensibilidade mágico-realista não se circunscreve à América Latina. Assoma em todas as literaturas mundiais de tempos a tempos e García Márquez era conhecido pela sua vasta cultura literária.
O interminável processo judicial de Charles Dickens, Jarndyce vs. Jarndyce em Casa Abandonada, encontra correspondência no interminável comboio que leva uma semana a atravessar Macondo. Dickens e García Márquez são ambos mestres da hipérbole cómica. O Gabinete da Circunlocução de Dickens, um departamento governamental que existe para não fazer nada, habita a mesma realidade ficcional que todos os governadores e tiranos indolentes, corruptos e autoritários na obra de García Márquez.
O Gregor Samsa de Kafka, metamorfoseado num enorme inseto, não se sentiria deslocado em Macondo, onde as metamorfoses são tratadas como lugares-comuns. O Kovalyov de Gógol, cujo nariz se destaca do rosto e vagueia por Sampetersburgo, também se sentiria em casa. Os surrealistas franceses e os fabulistas americanos fazem também parte desta companhia literária, inspirados pela ideia da ficcionalidade da ficção, pela sua natureza composta, ideia que liberta a literatura dos confins do naturalista e lhe permite abordar a verdade por meio de vias mais irracionais e talvez mais interessantes. García Márquez sabia muito bem que pertencia a uma família literária extensa. William Kennedy cita-o: «No México, o surrealismo anda pelas ruas.» E de novo: «A realidade latino-americana é inteiramente rabelaisiana.»
Mas lá está: os voos de fantasia precisam de terra firme entre eles. Quando li García Márquez pela primeira vez nunca tinha ido a qualquer país da América Central ou da América do Sul. No entanto, nas suas páginas encontrei uma realidade que conhecia bem da minha própria experiência na Índia e no Paquistão. Nos dois lugares havia, e há, um conflito entre a cidade e a aldeia e existem fossos semelhantemente profundos entre ricos e pobres, poderosos e não-poderosos, grandes e pequenos. Ambos são sítios com uma forte história colonial e em ambos a religião é da maior importância e Deus está vivo tal como, infelizmente, os piedosos. Conheci os coronéis e generais de García Márquez, ou pelo menos os seus equivalentes indianos e paquistaneses; os seus bispos eram os meus mulás; os seus mercados de rua eram os meus bazares. O mundo dele era o meu, traduzido para espanhol. Não admira que me tenha apaixonado por ele – não pela sua magia (embora, enquanto escritor criado a «lendas fantásticas» do Oriente, isso também fosse atraente), mas pelo seu realismo. O meu mundo era, porém, muito mais urbano do que o dele. É a sensibilidade da aldeia que confere ao realismo de García Márquez o seu sabor particular, a aldeia em que a tecnologia é assustadora mas uma rapariga devota a subir aos céus é perfeitamente credível; em que, tal como nas aldeias indianas, em toda a parte se acredita que o miraculoso coexiste com o quotidiano.
Ele era jornalista e nunca perdia os factos de vista. Era um sonhador que acreditava na verdade dos sonhos. Era também um escritor capaz de momentos de uma beleza delirante e por vezes cómica. No início d’O Amor nos Tempos de Cólera: «O cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados.» No cerne d’O Outono do Patriarca, depois de o ditador vender o mar das Caraíbas aos americanos, os engenheiros navais do embaixador americano «levaram-no em peças numeradas, para o semearem longe dos furacões nas auroras de sangue do Arizona […], levaram-no com tudo o que tinha dentro, meu general, com o reflexo das nossas cidades, os nossos afogados tímidos, os nossos dragões dementes». O primeiro comboio chega a Macondo e uma mulher enlouquece de pavor. «Vem aí – conseguiu explicar – uma coisa horrível que parece uma cozinha a arrastar uma aldeia.» E, claro, inesquecivelmente:
«O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezassete filhos varões de dezassete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou a catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo.»
Por tal magnificência, a nossa única reação possível é gratidão. Era o maior de nós todos.
O ilustrador (e editor) André Letria esteve no sofá da LER e apresentou o Pato Lógico: a viagem já começou há quase um ano e está a entrar em velocidade de cruzeiro.
Quantas vidas vive um ilustrador?
Todas as que as suas ideias permitem. Ou todas as vidas das histórias que ele tem de ilustrar. Vive-se aquilo que se lê.
Como se fosse uma personagem?
Como se fosse um encenador ou um realizador. Entra-se na história, decide-se o tempo que ela leva a deslizar pelos olhos. Escolhe-se a cor, o peso, o som.
As histórias têm som?
Claro. O som da folhagem ao vento, ou o som de uma montanha que se desmorona.
Por falar em folhas ao vento, um ilustrador pode viver a vida de um editor?
Pode, se não tiver medo de montanhas ruinosas.
Quais montanhas?
Aquelas que esmagam os editores independentes, muitas vezes oprimidos por um circuito de distribuição viciado. As montanhas de novidades editoriais irrelevantes, que se amontoam em livrarias sem espaço e deixam soterradas ideias com falta de ar.
E como faz um ilustrador/editor para vir à tona?
Pode falar de “Mar”, por exemplo.
De que forma?
Navegando de “A” a “Z” em barcos de papel ou carracas descobridoras.
Entre nós e palavras há ideias fundentes?
Talvez as que fundem texto e imagem num só objecto, a que às vezes se pode chamar livro. Ou livre. Sem necessidade de definição.
E isso é lógico?
Lógico como um pato. O Pato Lógico, que é um animal editorial que faz livros com pernas para andar e asas para voar.
Então um ilustrador/editor não tem tendência para enriquecer?
Talvez um dia... Quando se perceber que é nas escolas que tem de se investir. Que a educação é que move montanhas.
És um visionário?
Não. Estou só a pensar no «Futuro».
No «Futuro»?
Sim. É o Actividário que vem a seguir ao «Mar».
Actividário?
É assim que se chamam os livros desta colecção. São actividários porque sugerem actividades em forma de abecedário. Um abecedário de ideias largas discutidas com o Ricardo Henriques.
E o Pato Lógico, tem futuro?
Está a tentar agarrá-lo. Às vezes parece que foge. Outras vezes fica à espera, a oferecer boleia.
Estás a falar da edição digital?
Sim. O Pato Lógico contribuiu para inventar uma nave. Inventou-a com outra empresa chamada Biodroid. A viagem já começou há quase um ano e está a entrar em velocidade de cruzeiro.
Achas que me dá boleia?
Dá boleia e prémio. Mas só se tua história for boa.
Na caixa de comentários a este post (uma ironia sobre o preço dos livros), alguém que — sem ironia — lança este desafio, o de deixarmos de nos armar em espertos:
«Mas tomam as pessoas por parvas? É óbvio que os livros são caros. Por que razão não incluiram na lista de comparações CD's de música ou DVD's de cinema? Por que motivo um CD produzido por um colectivo de 5 músicos (por exemplo) é mais barato que um livro produzido por um indivíduo munido apenas de um computador? Por que motivo um filme produzido por uma equipa de dezenas de profissionais chega-nos mais barato em DVD que um livro elaborado por apenas uma pessoa? Vejam lá se deixam de se armar em espertos.»
A «descoberta dos nórdicos» é uma revolução sentimental na literatura de crime. O inspetor-chefe criado por Jo Nesbø (músico – um álbum a solo, quatro na banda Di Derre –, antigo corretor da bolsa) interpreta um papel difícil e amargo: o de um herói em busca de uma consolação que não existe. A Noruega está povoada da sua solidão e da sua melancolia em 10 livros.
Texto de Francisco José Viegas
Quantas vezes encontramos Harry Hole pelas ruas de Oslo? Só se tivermos sorte. No n.º 5 da Rua Sophie, os moradores colocaram uma pequena placa lembrando que Harry Hole «vive» ali. O seu vizinho paquistanês, Ali, proprietário de uma mercearia, não tem direito a placa, mas sem ela a vida de Harry Hole seria completamente diferente. Ao fim de cinco livros (Vingança a Sangue-Frio, O Redentor, O Pássaro de Peito Vermelho, A Estrela do Diabo e O Boneco de Neve – Caçadores de Cabeças está traduzido mas não faz parte da lista das investigações de Hole), ele cabe neste retrato: magro, cada vez mais magro, mal barbeado, descuidado, frequentemente ferido por isto ou aquilo, amado e odiado na polícia de Oslo, mal alimentado, fumador e não fumador, autodestrutivo (ao ponto de afastar uma mulher que ama), com má pontaria – e alcoólico:
«– O meu nome é Harry – disse o homem numa voz grave. A fina rede de veias vermelhas do seu grande nariz indiciava muitos anos de vida longe da sobriedade. – Sou alcoólico.»
Hole vive permanentemente entre o alcoolismo e a fuga ao álcool («O lobo solitário, o bêbedo, o enfant terrible do departamento.»), ludibriando os amigos, o chefe Bjarne Møller, Rakel, a colega Beate Lønn, o psicólogo Ståle Aune – exceto a parceira Ellen Gjelten, que viria a ser assassinada, e Tom Waaler, a sua besta negra, o polícia que Hole persegue como Holmes luta com Moriarty, até à morte. Por vezes engana-os, bebendo cerveja sem álcool – ou, às escondidas, comprando água mineral –, mas há quase sempre uma garrafa que se equilibra com dificuldade na extremidade de uma mesa ou de uma noite amarga: Jim Beam, de Clermont, no Kentucky.
Se Harry Hole tivesse conhecido a dupla Terry Lennox/Philip Marlowe (d’O Imenso Adeus, de Chandler) é provável que partilhasse a bebida com eles, mas não o bar, porque o álcool é a sua droga de solitário. «Harry odiava bares temáticos: bares irlandeses, bares topless, bares na moda ou, os piores de todos, bares de celebridades onde as paredes estavam cheias de fotografias de clientes regulares com alguma notoriedade.» Em quase todos foi posto na rua. Bebeu demais e foi inconveniente. O homem que em vários dos seus livros é apresentado como «o heroico polícia norueguês», especialista em serial killers (estudou com o FBI em Chicago), que matara um assassino na Austrália, que é convidado pelos programas de maior audiência em televisão, não sucumbe apenas ao álcool – há também Rakel (estiveram juntos num concerto dos Raga Rockers em 1988, mas não se conheciam na época). Rakel Fauke (filha de um «historiador amador», antigo militar na Segunda Guerra) sobreviveu a um cargo diplomático e a um casamento russo e é mãe de Oleg (a quem Harry há de oferecer discos dos Led Zeppelin e The Who).
Ao seu lado, Harry Hole consegue ver andorinhas enquanto o Sol parece tingir-se de vermelho, recortado sobre o fiorde de Oslo, e promete passar duas semanas na Normandia ou alugar uma cabana junto de um lago para ensinar Oleg a nadar. Mas tanto o trabalho como o álcool acabam por impedir seja o que for. «Nunca lhe prometera que não voltaria a ficar feito em pedaços. Nunca lhe prometera que as coisas seriam fáceis com ele.»
Às vezes, Harry leva Rakel a almoçar a Oppsal, onde vivem o pai e a irmã, Sis. Às vezes, no caminho para Holmenkollen, pensa em substituir o carro, um Ford Escort de 20 anos. Muitas vezes não toma banho e alguém o avisa de que cheira mal. Fica envergonhado e promete corrigir-se. Ou pensa em Sølvi, uma rapariga que namorou durante um verão em Åndalsnes, durante a adolescência. Uma vez, Harry quase traiu Rakel com Anna Bethsen, uma cigana, artista plástica – mas ela apareceu morta no dia seguinte a um jantar exótico. Depois, quase a traiu de novo com Vibeke Knutsen, pele branca, voluptuosa, ex-alcoólica como ele, a quem Harry diz: «Seja o que for que queres de mim, eu não tenho.» Há uma canção de Bob Dylan muito parecida. Depois, um dia, é a vez de Rakel sucumbir e passar a viver com Mathias Lund-Helgesen – mas uma noite, uma noite em que Harry estava a ouvir Franz Ferdinand em casa, ela visita-o (isso acontece no seu melhor livro, O Boneco de Neve) e a sua história pessoal da Noruega altera-se de novo, altera-se sempre até que, uma vez por outra, a realidade se encarrega de oferecer um crime de sonho a Harry: um serial killer.
Às vezes, Harry Hole sonha com as vítimas: o corpo de uma mulher decapitada e retalhada, encontrada numa floresta; o cadáver encontrado na arca frigorífica de um barco de recreio na baía de Bergen; uma mulher assassinada enquanto toma duche durante uma tarde de verão, quando a temperatura se aproxima dos 36 graus e a noite nunca mais desce sobre Oslo, a cidade que ama e que descreve ou percorre com minúcia. A sua Noruega não é um mundo organizado, como nos livros de Knut Hamsun ou no «programa ideológico» de Sjöwall e Wahlöö; pelo contrário, é uma espécie de plataforma onde se movimentam polícias corruptos, jornalistas que cedem à chantagem, gangues de nazis, praças onde se vende droga e imigrantes esperam pelas carrinhas do Exército de Salvação, arquitetos de casas de luxo, assassinos a soldo, médicos obcecados pela morte, desconhecidos que protegem o seu passado e nunca serão bem-sucedidos, ricos que se encaminham para a falência, mulheres como Ragnhild Gilstrup que constroem o seu mundo de moralidade e sexo. Nesse cenário, o Estado «de bem-estar» desapareceu há muito. Quando uma mulher pergunta a Harry Hole se ele vai beber com um grupo de amigos, ele responde: «Não tenho amigos.»
Ao contrário de pelo menos alguns que, por frustração com a União Europeia e o «Ocidente», encaram com equanimidade as ações de Putin, eu estive na Rússia de Putin e conheço bem alguns dos democratas russos que sob ele padecem.
Texto de Rui Tavares
Onde vai isto parar? Não sei se o deveria dizer, mas desde o início da crise ucraniana que receio que haja um objetivo final para Putin: Odessa. Olhando para um mapa, é quase no extremo oposto da região onde as forças pró-russas mantêm ainda ocupados os edifícios da administração ucraniana. Mas historicamente Odessa era a grande cidade russa (e judaica) da Nova Rússia, como os czares chamaram à faixa de território junto ao mar Negro que conquistaram ao Império Otomano no fim do século XVIII. É ainda uma cidade maioritariamente russófona, embora pareça ser de maioria étnica ucraniana, tanto quanto se possam distinguir estas coisas. E permite duas coisas: ligar a Rússia à região separatista da Transdnístria, na Moldávia, e cortar o acesso da Ucrânia ao mar Negro. Sem litoral, a Ucrânia fica reduzida a Kiev e às antigas regiões austro-húngaras (e polacas) da Galícia, sem a menor hipótese de se tornar numa potência regional. A visão de Putin para a Ucrânia parece ser a seguinte: ou aquele país é uma extensão da Rússia, e nesse caso pode ser deixado em paz, ou é um país desleal à Rússia, e nesse caso deve ser punido e, se necessário, mutilado. Não é uma visão muito diferente da que Putin tem para a própria Rússia e para a sua sociedade. Quando serve os propósitos de Putin, deve ser louvada pelo seu patriotismo. Quem não servir, azar para eles. Putin é um oportunista. Enquanto foi útil jogar segundo as regras do direito internacional, fê-lo com rigor. Se houver mais a ganhar ao não o fazer, joga-se à antiga: pela anexação, às claras ou encoberta. É essa a doutrina do «orputinismo».
Ao contrário de pelo menos alguns que, por frustração com a União Europeia e o «Ocidente», encaram com equanimidade as ações de Putin, eu estive na Rússia de Putin e conheço bem alguns dos democratas russos que sob ele padecem. E nem a mesma frustração que sinto perante os desmandos da troika e outras tropelias antidemocráticas que se verificam deste lado do continente, me fazem esquecer do que lá vi e do que me contam. Na Rússia, um coisa tão banal quanto a criação de um centro de estudos está sujeita à arbitrariedade das autoridades; numa universidade conhecida por nela lecionarem oposicionistas, bastou enviar o corpo de bombeiros para «uma vistoria» na qual se decidiu que o edifício não era seguro, ficando assim encerrado até a realização de uma das eleições fantoche em que Putin trocou de presidente para primeiro-ministro. Um jornalista incómodo não perde o emprego; perde o sossego e é capaz de perder a vida. Uma simples associação ou ONG está sempre a um passo de ser declarada uma «agente do estrangeiro» e ser encerrada. Os democratas russos sabem bem de onde vem isto: da História. Um e-mail recente que recebi contava-me do medo de sair do país pela última vez, e encontrar a porta fechada ao regresso. Quem viveu o fechamento quase secular da União Soviética, sabe bem reconhecer os sinais indesmentíveis de um novo fechamento: o complexo de superioridade patriótico, a ideia de que a Rússia não pode confiar em ninguém e que todos os estrangeiros a querem roubar. Sabem, em última análise, que é a Rússia que tem mais a perder com esta atitude. E nada os desespera tanto quanto ver os democratas ocidentais ceder à tentação do orputinismo.
A bibliografia é vastíssima e boa parte dela não está, ainda, traduzida – aqui ficam (para quem quer iniciar-se no género) alguns dos títulos que explicam o novo mundo nórdico vivido através dos seus detetives, vítimas e homicidas.
Para quem nunca leu Nesbø, o seguinte: Harry Hole, o detetive, continua a ser ex-alcoólico; o retrato da Noruega continua a ser deprimente e divertido; Oslo é uma cidade que regressa sempre aos seus lugares; a memória de Rakel é uma farpa para Harry – que está mais magro. Neste livro, além de Oslo, há um desenho inesquecível, a aguarela, de Bergen, a cidade dos fiordes, logo a abrir: um cadáver retalhado na neve era a última coisa que se espera daquela tranquilidade florestal, daquele recorte diante do mar. Katrine Bratt é uma nova colega misteriosa e inteligente que só os ingénuos querem conhecer. A este propósito, escreve-se lá para o fim: «Ela já ia a caminho do céu, consumida por demónios.» É o que acontece com as sereias que vivem em terra. E com mulheres – mães, uma por ano –, cuja biografia Hole persegue com uma frieza cada vez mais fingida. Ele trabalha com o coração cheio de neve num argumento que, o leitor há de perceber, se mistura com a sua própria biografia sentimental.
Tudo começa quando há uma infiltração num prédio: gotas de água, vindas do andar de cima – estamos em pleno verão – começam a cair numa panela onde há água a ferver. Mas com a água há albumina: daí ao sangue, é uma conta simples. Menos simples é a vida de Harry Hole por esta altura, cheia de álcool, desventuras amorosas e desejo de vingança. O álcool é o pretexto para ser despedido mas resolve passar as últimas semanas de funcionário da polícia ajudando a investigação em redor dos crimes que se sucedem no calor abafado de Oslo: um assassino meticuloso, frio, cruel, que deixa sinais esotéricos nos corpos das suas vítimas. Um dedo cortado; um diamante sob a pálpebra; um disparo a meia distância – Hole mostra toda a sua erudição sobre cristianismo antigo, cultura viquingue ou sacrifícios rituais. Pelo meio, um encenador e produtor teatral, uma mulher tentadora demais, e o desejo de vingança de novo, que serve todos os argumentos.
Gunder Jomann é solteiro, vendedor de máquinas e alfaias agrícolas em Elvestad, na Noruega, e decidiu viajar para Mumbai a fim de conhecer e casar com Poona Bai. Um casamento decidido por catálogo – mas Poona amava-o. O casamento na antiga Bombaim foi rápido e Gunder regressou ao gelo e à neve europeus, preparando a casa para a chegada de Poona («Eu gosto de cozinhar. Quando chegar à Noruega vou fazer caril de galinha para ti e para a tua irmã.»). Mas Poona nunca chegou a preparar esse caril; retido no hospital depois de um acidente de automóvel de Marie, a irmã, Gunder Jomann não pode ir buscá-la ao aeroporto – e o rasto da sua jovem mulher indiana perde-se no meio do inverno perpétuo de Elvestad. A investigação de Konrad Sejer (e Jakob Skarre), os detetives da série policial de Karin Fossum, enfrenta essa catástrofe que toma conta da vida pacata do «campo norueguês» («Sem agricultura não há Noruega.»), onde os enigmas nunca se dissolvem nem se revelam.
Dom Quixote, 280 págs. [Frederico Ventura da Gama]
Uma série de mortes brutais e sem ligação vem perturbar a pacata cidade de… Não é assim que começam todas as histórias de crimes violentos em cenários idílicos? É. E é esse o ponto de partida para o quarto livro da dupla de investigadores Inger Vik e Yngvar Stubo, que, como habitualmente nos policiais nórdicos, carrega um lastro social a reboque da estrutura popular e atraente do thriller. São poucos os autores que não aproveitam a oportunidade. No caso de Anne Holt, essa preocupação é quase obrigatória visto que a autora é advogada e ex-ministra da Justiça da Noruega. Em A Raiz do Ódio, há temas delicados e atuais como o fanatismo religioso, o racismo e a intolerância. Seria ficção científica se não fosse, afinal, o país de Anders Breivik. Contraponto, 384 pp. [Bruno Vieira Amaral]
O sueco Henning Mankell tem o mérito de ter criado um detetive ficcional que pede meças aos seus homólogos norte-americanos. Kurt Wallander é uma amálgama épica de defeitos: divorciado, com relações difíceis com a filha, a ex-mulher e a memória do pai, este polícia bebe demais, só come porcaria e não lida bem com os seus superiores; é o perfil ideal para anti-herói do romance noir. Neste livro, Wallander emerge de um pântano de álcool e de anti-depressivos para investigar a morte de um advogado – e acaba a confrontar-se com um labirinto de corrupção e de interesses. Moralista e corrosivo, o detetive de Mankell é o exemplo acabado do homem que insiste em levantar o tapete para deixar o lixo à vista de todos.
O vulcão das ilhas a sudeste da Islândia, ao sul de Vík (Vestmannaeyjar, como se deve dizer) é um velho conhecido – as suas cinzas invadiram a Europa por duas vezes, arrastadas pelo vento. Mas não só. Fazem parte da literatura num dos livros mais poderosos da vasta série de «policiais nórdicos» e transformaram Yrsa Sigurðardóttir numa das suas rainhas – e Thóra Guðmundsdóttir, a sua personagem principal (uma advogada), numa intérprete da vida islandesa. São estas cinzas que escondem cadáveres que, 30 anos depois da primeira erupção, convocam as obsessões extraordinárias de Yrsa: fantasmas, famílias, tradições islandesas antigas, rituais perdidos. Se alguém procura enigmas das ilhas e poeiras luminosas do norte – é aqui que eles se encontram.
Fora da Escandinávia, sobretudo em países como Portugal, os policiais nórdicos despertavam pouco interesse – até à publicação da trilogia Millenium, que transformou uma indústria local num bem de exportação quase tão popular como o IKEA, a Volvo ou os Abba. O primeiro volume gera no leitor aquele espanto de alguém que está a provar uma refeição maravilhosa sem saber ao certo quais são os ingredientes ou sem acreditar que essa mistura pode resultar num prato saboroso: mistério à Agatha Christie, assassino em série, as questões políticas e sociais e uma heroína atípica que nos obriga a repensar as nossas ideias feitas sobre heróis literários. No final, a recuperar do choque, só temos a certeza de que queremos mais.
O caso começa antes de o livro, propriamente dito, começar, enquanto o detetive Åke Stenström investiga o homicídio de uma prostituta portuguesa em Estocolmo. Mas Åke é, por sua vez, assassinado durante um tiroteio num autocarro no meio daquela cidade que simboliza as grandes realizações da social-democracia sueca e da felicidade entre as classes. O inspetor Martin Beck (há um filme que adapta, mal, o livro e onde Walther Mathau, ai dele, se chama – inexplicavelmente – Jake Martin, em vez de Beck) está rodeado da sua equipa de pessimistas e comparsas (Per Månsson, Richard Ullholm, Ulf Nordin) enquanto escuta o disco que a sua filha Ingrid lhe ofereceu pelo Natal, «The Laughing Policeman» (ainda em vinil, evidentemente, porque o livro é de 1968) de Charles Penrose.
O lago Kleifarvatn não fica muito distante de Reiquejavique mas, para quem conhece a Islândia, isso não significa nada – é o resto de uma paisagem lunar onde foi encontrado um esqueleto com um buraco no crânio; o que é compreensível em se tratando de um romance policial. Mas Erlendur Sveinsson, o inspetor islandês, não é tão compreensível: o passado persegue-o, tal coma sua vida sentimental. O primeiro leva-o aos tempos de militância comunista e à memória dos anos 50, quando a então RDA, sobretudo Leipzig, era um centro de universitário importante para o «internacionalismo proletário»; o segundo leva-o a um novo caso de adultério, em que ele se torna especialista, além de o arrastar para os problemas dos seus filhos Eva e Sindri. Curiosamente, nesses anos 50, o grande escritor islandês era Halldór Laxness: também ele era comunista e esteve na RDA.
Um dos grandes romances da «nova vaga nórdica»: uma pequena vila, frio, homicídio, reflexões sobre a sociedade sueca, verdades escondidas, relações familiares conturbadas e a inevitável história de amor. Após a morte dos pais, a escritora Erica Falck regressa à terra natal onde é encontrado o cadáver de Alex, uma amiga de infância. Aparentemente trata-se de um suicídio mas, aos poucos, os indícios começam a apontar para a tese de homicídio. Então, o livro ganha contornos bergmanianos na descrição das relações entre mães e filhas e na análise da claustrofobia social nas pequenas comunidades. Como curiosidade e piscar de olhos literário, o facto de Erica estar a escrever uma biografia da compatriota Selma Lagerlöf, a primeira mulher a receber o Prémio Nobel da Literatura.
Até que ponto um livro é realmente caro? Podemos mencionar os serviços que presta ao cérebro, às sestas de verão ou à decoração de uma casa. E podemos dizer que um livro não se esgota na última página. Mas, para já, vamos aos preços.
1 bilhete para um jogo de futebol
€22,50
Vodafone Apple iPhone 5s 16GB (Prateado)
€689,9
MEO Apple iPhone 4s 8GB (Preto)
349,9
Samsung i9305 Galaxy S III (S3) 4G 16GB Sapphire Black
Diz-se que foi uma das raríssimas aparições em público de J.K. Rowling, aliás Robert Galbraith, o autor de The Silkworm (a publicar em Janeiro/Fevereiro pela Presença): de fato e gravata. A reportagem no The Guardian (a foto que publicamos é bem melhor...)
Uma pequena editora do Tennessee, Devault-Graves, reeditou três histórias de J.D. Salinger publicadas otiginalmente na revistas Story e City nos anos quarenta, mas nunca registadas pelo autor de À Espera no Centeio. Com novíssimas ilustrações.
O criador de Philip Marlowe, Raymond Chandler, e o de James Bond, Ian Fleming: o segundo entrevista e conversa com o autor de A Dama do Lago sobre uma questão insolúvel: o que faz um bom thriller? São cerca de 30 minutos de gravações tornadas públicas pela primeira vez em 1988; Chandler morreria pouco tempo depois dessa conversa — aqui em quatro fragmentos de 7 minutos e 30 segundos aproximadamente cada uma.
Primeira: há muitos romances e pouca gente a lê-los; segunda: escrever é uma atividade que não tem grande mérito nem mistério — poetas, filósofos, linguistas, apresentadores de televisão, treinadores de futebol, engenheiros, professores, padres, psiquiatras, soldados ou jornalistas, todos podem fazê-lo; terceira: não dá muito dinheiro...; quarta: escrever um romance não garante a fama ou a notoriedade – que vêm da televisão, por exemplo; quinta: também não confere imortalidade ou direito à posteridade; sexta: escrever um romances não é assim tão extraordinário para o ego; sétima: aquelas razões clássicas que movem ou caracterizam o trabalho do romancista, também não são tão especiais como se julga. Claro que há uma razão para o fazer. Está tudo num artigo da Three Penny Review, agora republicado pelo The Independent, de Londres.
Entrevista com Alessandro Baricco, o autor de Seda, no Clarín de Buenos Aires:
«Hablo de tantas cosas que cada tanto digo pavadas. Pero lo que sucede es que, cuando yo era joven, había una cultura muy especializada. Estaba aquel que hablaba sólo de moral, el que hablaba sólo de política en sentido estricto, y así. No había muchos intelectuales que pudieran hablar de un espectro amplio de cosas. El primer modelo fue Umberto Eco, que escribía ensayos de semiología hablando de Woody Allen o de Walt Disney. Para nosotros era un modelo de posibilidad, pero estaba él solo. Yo tuve un profesor que es un filósofo bastante conocido para ustedes los argentinos, que se llama (Gianni) Vattimo, que para explicar a Heidegger o a Nietzsche podía citar a la publicidad. El resto de la cultura era muy especializada. Hoy se demostró que el verdadero aporte a la cultura lo hacen aquellos pensadores que pueden considerar un amplio espectro. A mí me venía en mente enseguida comparar cómo jugaba al tenis McEnroe con el modo en el que Rossini hacía música o con cómo escribía Celine. Me parecía la cosa más interesante del mundo. Lo hice toda la vida.»
Ursula K. Le Guin assina a crítica a Skylight (A Clarabóia), de José Saramago, no The Guardian; também no The Independent, crítica de James Runcie: «What kind of writer Saramago would have become had the novel been accepted and published in 1953. Might he have been more conservative and consciously "populist"? Did he need 20 wilderness years to think about what it must mean to be a truly radical writer, experimenting with form and style before discovering a unique voice that ultimately dispensed with most punctuation, and even the use of capital letters?»