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LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

Gonçalo M. Tavares por José Saramago

«Não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento disfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.» Texto completo de José Saramago aqui.


Fotografia de Pedro Loureiro publicada na edição de Setembro (nº 72) da LER.

John Updike [1932-2009]

Poucos eventos literários terão produzido um consenso mais qualificado do que a recente morte de John Updike. A ocasião parece ter sido interpretada pela maioria como uma oportunidade para testar os limites do elogio contorcido, para exercitar os «mas» e os «no entanto». Debaixo dos sinos fúnebres ouviu-se o ruído distinto de dentaduras a ranger. Houve uma ou outra elegia não-adulterada (a mais comovida de todas foi talvez a de Ian McEwan nas páginas do Guardian), mas todas as outras trouxeram sobretudo o restolhar da admiração relutante, assegurando-nos que havia muito para gostar em Updike – debaixo daquela centena e meia de sólidas razões para não se gostar nada de Updike.
As objecções usaram três tipos de maquilhagem: a pessoal, a geracional e a estética. A objecção pessoal não é difícil de compreender se examinarmos os outros modelos de personalidade disponíveis. Numa América que se habituou a perdoar a imaturidade dos seus bardos (Hemingway, Fitzgerald, Mailer), o maior pecado que restava era a jovialidade despretensiosa. Updike atravessou o século sem dramas, sem safaris, sem cicatrizes. Teve os seus divórcios, mas nunca apunhalou ninguém. Escreveu sobre crises de fé sem nunca ter crises de pânico. A sua prolificidade bonacheirona ofendia uma cultura literária disposta a tolerar os porta-vozes torturados da condição humana, mas não aqueles que fazem da nostalgia um trabalho administrativo.
A objecção geracional é a menos relevante, e uma consequência natural da longevidade: quem se aguenta muito tempo no mesmo sítio tende inevitavelmente a intrigar e a irritar quem chega depois. Tornou-se apetecível ver em Updike um duplo anacronismo, uma relíquia dos anos 60, ainda agarrado ao evangelho narrativo do século XIX: Deus e Sexo – registados na linguagem da epifania.
Mas o tom predominante nos obituários foi um inusitado paternalismo, assente numa espécie muito particular de intolerância estética. A objecção começa por reconhecer inequivocamente o talento – e prossegue, com lógica acrobática, para uma negação do mesmo. A sua formulação básica é: Updike tinha um dom extraordinário, é uma pena que o tenha esbanjado nos temas errados e nos livros errados. Isto parte de uma tremenda falácia crítica, que vê o talento literário como um instrumento polivalente, uma espécie de canivete suíço que pode ser aplicado a qualquer problema. Na verdade, o talento funciona quase sempre dentro de limites muito estreitos; e como a única maneira de o identificarmos é precisamente pelos seus efeitos visíveis, torna-se particularmente injusto exigir que um escritor escreva livros diferentes daqueles que escreveu. É um pouco como elogiar um adolescente pelo seu talento para o futebol, antes de ruminar indignadamente sobre o facto de o mesmo talento não servir para tirar melhores notas a matemática.
O talento espectacularmente restrito de Updike consistia em ser a melhor pessoa do mundo a escrever como Updike. Isto não é uma proeza menor, e merece algum apreço. Outros colegas de panteão falhariam avaliações semelhantes. Hemingway teve um intervalo muito reduzido em que foi, de facto, a melhor pessoa do mundo a escrever como Hemingway. E Kerouac nunca foi, nem no pico da sua forma, uma das 10 melhores pessoas do mundo a escrever como Kerouac. (Há uma paródia antiga publicada na New Yorker que demonstra que até Updike era melhor do que Kerouac a escrever como Kerouac.)
A unidade literária básica da escrita de Updike era a «frase» – não a «voz», não o «personagem», não o «enredo». A frase é invariavelmente «bonita», mesmo quando não há qualquer urgência para essa «beleza». É multicolor, mas com marcada tendência para o púrpura. É animada por uma eufórica monotonia poética, em que os mesmos abundantes recursos verbais são aplicados à descrição de uma avenida suburbana decorada com elmos, ou a uma carinha laroca decorada com sémen. É possível interpretar isto não como um estilo, mas como uma espécie de autismo estético: o método de alguém que memorizou as cartas todas, mas é incapaz de jogar o jogo.
Mas é um estilo. Um estilo seguro e aparentemente retrógrado, mas na verdade extraordinariamente arrojado: como qualquer estilo dependente da acumulação de percepções poetizadas, corre o risco de passar a linha a qualquer momento. Mesmo as melhores frases de Updike (e, na minha opinião, houve muitas frases más) esticavam a corda até ao limite. Continham a quantidade máxima de música que uma boa frase pode conter antes de se tornar péssima.
A primeira regra de Updike enquanto crítico era nunca culpar um autor por não conseguir aquilo que nem sequer tentou. Levada ao seu extremo, a mesma regra tornaria qualquer obra invulnerável: um dos pilares da crítica literária é a noção de que as vitórias específicas de um determinado escritor podem perfeitamente ser irrelevantes para o leitor, e até para a Literatura. Ainda assim, é possível abusar da posição oposta, e a intolerância de que Updike foi alvo, particularmente nas últimas décadas, é difícil de compreender.
O cânone sofre sempre alguma instabilidade depois de abanões dessa magnitude. Por enquanto, e apesar das investidas de Harold Bloom e James Wood, o lugar de Updike nas letras americanas parece estar mais ou menos seguro. Segundo os seus próprios termos, a sua carreira foi um triunfo de que poucos se podem gabar. Não escreveu os melhores livros; mas escreveu exactamente aqueles que quis escrever, e que mais ninguém poderia ter escrito.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER.

O Bem e o Mal: Dia Mundial do Livro

BEM
Um misto de preguiça, esperteza saloia e génio fazem com que neste mês fale com um mês de adianto. Até porque se é para apontar as falhas, quanto mais cedo melhor.
Dia 23 de Abril – diz-vos alguma coisa? Logo vi que não. É o Dia Mundial do Livro, assim, capitulado como deve ser o que é verdadeiramente importante. Não o livro, o dia.
Há anos, o Nicolau Breyner fez-me rir. Foi antes de me fazer sorrir com o corpo da Soraia Chaves ao lado. Andou na rua, por alturas do seu Nico D’Obra, a perguntar às pessoas se sabiam que hoje (ou naquele dia, mas para todos os efeitos, como verão, o hoje também serve) era o Dia Mundial da Roda Dentada. Assim, capitulado também, que nem só de livros vive um homem, e como se sabe a roda dentada faz bem mais falta.
As pessoas, embaraçadas pela câmara de televisão (era na altura em que as pessoas ainda tinham vergonha de aparecer – agora, com o Emplastro, tudo isso, como se sabe, mudou), diziam que não. E quando inquiria acha bem que exista, respondiam que sim, que a roda dentada merece tanto como o pai, a mãe, ou São Cristovão.
O livro não quer estar ao mesmo nível. Não conheço relógios que trabalhem a letras, mas pelos vistos merece mais do que a roda dentada. Um escândalo. Porque raio temos nós de aturar os livros – e logo a 23 de Abril – mais do que já os aturamos quando os queremos ler? Acho, por isso, mal. Se era para celebrar, celebrassem antes o Dia Mundial da Ausência de Dias Mundiais Neste Dia. Sempre brindávamos a algo menos pateta. 
Com tantos dias mundiais, as pessoas ainda se esquecem que os dias são sempre todos iguais. E ainda bem. Que são.
   
MAL
Já escrevi vezes sem conta a crónica que se escreve sobre o facto de se ser escritor de crónicas e não termos assunto para a crónica que se deve escrever. Em cada conjunto de crónicas que vou criando, é certo e sabido que uma delas será sobre o facto de não ter o que dizer. Posso tentar ser um ficcionista, mas não tenho na cabeça ficção para tanto.
Mas desengane-se quem ache que é esta a tal. Desta vez consegui utilizar não a metalinguagem mas um termo técnico ainda mais interessante: fugir para a frente. Literalmente.
Esta crónica é sobre o Dia Mundial do Livro que se celebra com pompa, outras aves e circunstâncias diversas consoante os vereadores da cultura das autarquias têm um curso de línguas ou de educação física. A 23 de Abril.
Ora, são 16 de Fevereiro. Ou eram, quando escrevia. Agora, se comprou a LER como deve ao dia 1, 2 ou, vá lá, até ao dia 10, são qualquer coisa de Março. Não deveria eu ter esperado pela data mais certa para escrever sobre o Dia Mundial do Livro? Talvez, mas assim lá tinha de escrever desta vez sobre o facto de não ter sobre o que escrever.
Assim, não. Assim, falo numa revista de e sobre livros de como aguardo ansioso as celebrações de mais um dia mundial. Sem ironias. As livrarias oferecem ou vendem baratuchos livros jeitosos; as autarquias mais inteligentes fazem sessões de leituras ou comunidades de leitores; a biblioteca da minha terra convida os miúdos das creches para irem à bebeteca. E eu, sob a capa de um dia mundial, sempre posso passear o meu filho por entre as páginas do Carteiro Paulo. E, como dizia o outro, mesmo que com diferente verbo: passear é preciso.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER.

A banana de Scliar

No início do século XX, um rapazinho russo foge, com a família, da revolução bolchevique e chega a Porto Alegre (Rio Grande do Sul), no porão de um navio de carga. Durante a viagem de cinco semanas através do Atlântico, o futuro imigrante passou fome. Está muito frágil, esquelético, subnutrido. No cais, ao ver o seu estado, um gaúcho hospitaleiro oferece-lhe uma banana. O miúdo compreende que se trata de uma coisa de comer, embora não saiba como. Português não fala, por isso mexe no fruto esquisito, experimenta-o. «Até descobrir que a banana se descasca. Ele sabia que a laranja se descascava, porque na Rússia, nos dias de festa, costumava haver uma laranja para distribuir pela família inteira (um gomo para cada um). E ele sabia que a laranja tinha casca e caroços. Ao descascar a banana, apareceu uma coisa que ele julgou ser o caroço da banana. Deitou fora esse caroço e, para surpresa do gaúcho, comeu a casca de banana até ao fim.» Muitos anos mais tarde, o escritor brasileiro Moacyr Scliar, seu filho, que é quem fala dentro destas aspas, haveria de pegar na história e contá-la «mais de mil vezes». A última foi no encontro Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e o desenlace voltou a despertar gargalhadas e aplausos na plateia: «Meu pai morreu com mais de 80 anos e nunca deixou de me dizer: “sabe, filho, casca de banana não é tão ruim assim como a gente pensa”.»
É disto, sobretudo, que se fazem as Correntes. Das histórias contadas por autores sentados à mesa, diante de um auditório sempre cheio, mesmo nas sessões que começam às dez e meia da manhã. Ninguém sabe como explicar isto, mas a verdade é que o fenómeno se repete anualmente, sem atrasos nem sobressaltos, e todos os escritores se rendem à organização quase invisível, mas extraordinariamente eficaz, de Manuela Ribeiro e Francisco Guedes, os coordenadores que gerem com cordelinhos mágicos uma equipa e um encontro exemplares.
Este ano, na muito concorrida 10.ª edição, além da história do autor de Os Leopardos de Kafka, houve outras que maravilharam os espectadores. Por exemplo, a de Joaquim Arena, um autor cabo-verdiano que cresceu numa casa onde havia apenas quatro livros: Lady L., de Romain Gary; O Barão Trepador, de Italo Calvino; um outro de que não se recorda e a Bíblia. Quando escrevia cartas aos familiares, a avó fechava-se com a biblioteca mínima numa sala e Arena sempre supôs que ela precisasse dos livros como caução literária. A verdade era mais prosaica: «Um dia descobri que a minha avó usava os livros, sim, mas para guardar selos: os para a Europa dentro do Barão Trepador, os para a América dentro de Lady L. e os para Cabo Verde dentro da Bíblia, claro.»
Se o espaço desta crónica fosse elástico, caberiam aqui ainda outras belas histórias (as de Juan José Millás, Héctor Abad Faciolince, Paulina Chiziane, Andrea Blanqué, António Orlando Rodriguez, Luandino Vieira, etc.). Como não é elástico, o «caroço» comestível tem que ser deitado fora. Fica uma ideia ténue do que por lá se passou. A casca. Talvez não tão ruim assim.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER.

Alegadamente

O Público terá reformulado o estilo das suas páginas literárias; e o modelo da reformulação terá sido este:

HAROLD BLOOM DETESTA SHAKESPEARE

O famoso crítico norte-americano Harold Bloom afinal detesta Shakespeare, a cuja obra alegadamente dedicou muitas páginas.

Tudo indica que Harold Bloom detesta Shakespeare. A revelação, a ser verdadeira, foi feita no princípio da semana na página cultural do Correio da Manhã, que teve acesso a uma edição on line censurada do New York Times, graças a um pirata informático especialista em sites de Humanidades, que passou por Lisboa a caminho de Coimbra, ao que se supõe para ser doutorado honoris causa por aquela universidade da Beira Litoral, que aliás deve ter dado o mesmo título ao mencionado Harold Bloom. Segundo o New York Times segundo o Correio da Manhã, algumas pessoas ouviram Bloom, numa festa algures, imprecar contra Shakespeare, acusando-o de ser um poeta obscuro e dramaturgo menor sem jeito para urdir intrigas nem capacidade para desenhar personagens. Bloom terá mesmo chegado a dizer, ainda segundo o Correio da Manhã, que vários poetas europeus, entre os quais incluiu Gil Vicente, superam Shakespeare em graça, talento, criatividade e densidade metafísica. Bloom não desmentiu até agora estas informações. No entanto, o semanário Expresso ouviu duas pessoas na sua delegação de Nova Iorque que dizem ter sido enfermeira e motorista, respectivamente, do mesmo Bloom, e garantem que nunca o viram com jornais nas mãos ou sequer a consultá-los na Internet. «Ele só lia poesia», asseguraram ao semanário, que publica a afirmação sem identificar as testemunhas. Pode ser, portanto, que Harold Bloom nem tenha tomado conhecimento da reportagem do Correio da Manhã, o que explicaria a alegada ausência de desmentido.
Por outro lado, a revista Sábado noticiará amanhã, numa reportagem a que o Público teve acesso através de alguém mais ou menos próximo de um dos paginadores, que essas duas pessoas não terão propriamente existência, que serão fabricações duma sociedade secreta constituída para denegrir Bloom depois da publicação do Cânone Ocidental. A Sábado acrescenta que o nome de Shakespeare estará a ser indevidamente envolvido neste assunto, de forma inteiramente impune, visto que há muito se exige uma investigação rigorosa das actividades ilícitas dessa sociedade, mais do que conhecida pelas suas acções conspiratórias, mas com ligações a pessoas bem colocadas na universidade, na imprensa e na televisão americanas.
A reviravolta no caso, entretanto, teria lugar ainda nas páginas do Correio da Manhã. Com efeito, esse diário de referência noticiou, na sua edição de 25 de Janeiro último, que Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente fizeram as pazes no Gambrinus, onde se encontraram com as respectivas mulheres e donde saíram, ainda com as respectivas mulheres, no mesmo carro. O arrumador no local, ouvido pelo repórter, interrompeu a leitura da tradução do casal Guerra de Guerra e Paz para confidenciar que os dois intelectuais discutiam empenhadamente a «animadversão do bolume». Não atinando com o sentido da informação, o repórter absteve-se de a incluir na notícia que imprimiu, mas viria a encontrá-la – sem espanto, diga-se – na supramencionada e suspeitíssima edição on line do New York Times, a qual nunca chegou a publicar-se, alegadamente por efeito de pressões conjuntas do editor de Miguel Sousa Tavares e do director do Público, que, sabendo das referências ao encontro entre as duas figuras, recearam, decerto por motivos diferentes, que a divulgação do encontro viesse a prejudicar a audiência de certa telenovela inspirada no romance do primeiro ou nas crónicas do segundo, não se conseguiu apurar. O arrumador era na verdade um agitador a soldo para desviar as atenções dos verdadeiros problemas. Um comentador literário entretanto ouvido pelo Expresso numa sala muito escura, afirmou que toda a teia é absurda, que nada tem que ver com Bloom ou Shakespeare ou Cardoso Pires, mas terá garantido que a culpa é seguramente do primeiro-ministro português, José Sócrates, que nunca terá lido nenhum deles.
Uma coisa é alegadamente certa: o imbróglio adensa-se.


Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Viriato da Cruz e o poder da poesia

Se não estivesse morto (morri em Pequim a 13 de Junho de 1973) festejaria no próximo dia 25 de Março 81 anos. Há quem ache que Angola poderia ser hoje um país muito diferente se eu não tivesse morrido tão jovem, mesmo às portas da Revolução de Abril em Portugal, e das grandes mudanças que a mesma implicou para o meu país. Sinto-me lisonjeado com tais opiniões, mas acho-as exageradas. É verdade que um único homem pode em certas circunstâncias alterar a correnteza da História – basta pensar em Nelson Mandela, sem o qual o regime do apartheid talvez não se tivesse desmoronado de forma pacífica. Olhando para trás, porém, sou forçado a admitir que o mau génio que sempre me dominou teria arruinado nesse futuro imaginário, como arruinou no duro passado real, qualquer encontro meu com a Senhora História.
Não me parece provável que em 1974 tivesse conseguido unir os diferentes movimentos nacionalistas angolanos. Não eu, um dos primeiros militantes do MPLA que se atreveu a contestar a liderança de Agostinho Neto e ousou romper com o partido para se juntar aos homens de Holden Roberto. Isto antes de romper com todos, a murro e à cacetada, e ficar completamente só. Levei a minha propensão iconoclasta sempre muito a sério. Tão a sério que um dia, em Pequim, onde estava exilado, quebrei um busto de Mao em público. Os meus anfitriões chineses ao invés de me expulsarem, como eu pretendia, condenaram-me a uma espécie de prisão domiciliária, ao ostracismo mais feroz, à penúria. Morri e enterraram-me sem testemunhas no cemitério dos estrangeiros. Se tivesse resistido mais alguns meses poderia ter conseguido deixar Pequim e recomeçar uma vida nova em Paris ou em Lisboa, onde me aguardavam muitos amigos.
Cheguei sempre cedo demais. Nunca soube esperar. Até para morrer fui impaciente.
Resumindo: vivo não teria ajudado a evitar nem a guerra civil, nem o desastrado  pesadelo totalitário que em poucos anos, sob o olhar perplexo do camarada Neto, arruinou Angola. Em contrapartida talvez me tivesse dedicado à poesia, aprofundando a meia dúzia de caminhos que sugeri em outros tantos versos ingénuos. É graças a esses versos que por excessiva indulgência da crítica, ou excessiva ignorância, muitos insistem em chamar-me poeta.
Nos anos 40 e 50 eu e mais alguns companheiros começámos a escrever poesia na intenção de despertar as massas. A poesia deveria servir, no nosso entender, para preparar o terreno para a insurreição nacionalista. E assim foi. Contrariando os cépticos, demonstrámos que a poesia pode mudar o mundo. Primeiro os versos, depois as balas. A seguir demos razão aos cínicos: mudar, mudámos, mas não para melhor. Acontece que, infelizmente os poemas que então produzimos estavam longe da excelência. Faltou-nos labor literário. Talvez com boa poesia pudéssemos ter obtido melhores resultados na política. Não deixei de acreditar no poder da poesia. Nem sequer na necessidade de levar a poesia ao poder. O problema (suspeito) foi a qualidade dessa poesia – e dos seus poetas. Não é possível cozinhar um bom funge com farinha ruim.
Se não tivesse morrido em 1973 estaria agora a confrontar-me – inclusive a murro e à cacetada, caso não me faltasse o fôlego, mas em todo o caso possuído pelo mesmo espírito iconoclasta – com todos quantos impedem a afirmação de um novo pensamento e de uma nova criatividade, capaz de iluminar consciências e de preparar terreno para outras insurreições, outras libertações. Vez por outra oiço alguém utilizar, a propósito do regime angolano, a expressão «pensamento totalitário», e rio-me às gargalhadas do alto da minha nuvem – eis aqui um belo oximoro. Não sei quanto tempo vai levar (o que no estado em que me encontro é indiferente) mas sei que mais tarde ou mais cedo a boa poesia acabará por se impor e triunfar.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

O tenista optimista

A astrologia parece-se com a tauromaquia: acumulou tanta legitimação cultural que nem podemos duvidar da sua elevação. És contra as bandarilhas? Então e o Lorca? Duvidas que Plutão influencie o teu exame de condução? Então e Pessoa? Fica-se sem resposta.
Com este pensamento em mente, adquiri o Guia do Amor 09 (Livros d’Hoje), do nosso astrólogo mais mediático. Paulo Cardoso teve a gentileza de estabelecer previsões para o nosso ano amoroso, bem como um útil guia de compatibilidades, que devemos trazer na carteira como se fosse o mapa do metro de Londres.
Em Janeiro, peguei no livro e comecei a ser informado dos meus amores destes próximos meses. Em tal matéria, sou um público-alvo um pouco atípico, porque em Janeiro eu já sei como vai ser o meu ano amoroso seguinte (parecido com o ano passado). Além do mais, sendo Sagitário, fico um pouco desconfiado com a «personalidade Sagitário» que os astrólogos (incluindo Cardoso) descrevem. Serei eu um sujeito «alegre», cheio de «optimismo», imbuído de assinalável «gosto pelo desporto» (nomeadamente a «equitação» e o «ténis), serei bastante «sociável» e com uma «confiança em mim mesmo» inabalável? A minha mãe e o Arquivo de Identificação de Lisboa garantem que eu nasci entre 23 de Novembro e 21 de Dezembro, e os astrólogos garantem que isso faz de mim, quer eu queira quer não, um tenista optimista. Seja.
Analisei então o calendário 2009 semana a semana. Cardoso não prevê coisas genéricas: arrisca e vai ao detalhe. Por exemplo, logo na semana de 5 a 11 de Janeiro é provável que eu tenha problemas com o meu «aparelho digestivo» (e tremo de pensar a ligação deste facto gástrico à minha vida amorosa). Ao longo do ano acumulam-se os conselhos sobre a maneira como me devo vestir, a conveniência de frequentar exposições e, claro, o saudável convívio com os meus filhos (prometo que arranjo uns quantos só para não fazer desfeitas). Na semana de 19 a 25 de Janeiro, estando eu a «pensar no passado» (acontece-me), sou desconvencido por Cardoso nestes termos: «Em vez de pensar no passado contacte o seu amigo Caranguejo ou Peixes». Creio que isso exige uma revisão radical da minha agenda de telefones, que eu até agora, patego, tinha por números e não por signos.
«Por volta de 18 de Fevereiro», glória. «Um sextil de Vénus a Marte proporcionará momentos intensos aos nascidos entre 3 e 5 de Dezembro». Dá-se o caso de eu ter nascido entre 3 e 5 de Dezembro e, vejam lá, de estar a escrever esta crónica num dia 18 de Fevereiro. E, não desfazendo no sextil, ainda não tive hoje nenhum «momento intenso», excepto ter queimado um pouco a língua com um abatanado. Mas ainda são 3 da tarde, never despair, como diria João Carlos Espada.
Exijo que mais tarde ou mais cedo me seja proporcionado um momento intenso, porque eu próprio sou muito intenso. Vem na semana de 4 a 10 de Maio: «Talvez não saiba o poder irradiante que tem em si. O seu lado tímido tem escondido o seu brilho num certo mutismo, que não tem permitido que o avaliem correctamente. É agora o momento de se exteriorizar, de mostrar quem realmente é, vai poder descobrir o seu encanto pessoal». Paulo Cardoso escreve isto, mas creio que não tem muito certeza do que diz, visto que na semana de 18 a 24 de Maio garante: «Poderá sentir uma profunda necessidade de ser amado». Eu contava que o poder irradiante que tenho em mim resolvesse o assunto, mas pelos vistos passada a Páscoa ainda estarei em regime onanista.
Agosto, no entanto, promete. Talvez por causa do «elevado magnetismo pessoal» readquirido em Junho, sentirei o amor «com mais intensidade» entre 17 a 23 de Agosto. Paulo Cardoso assevera que «a intimidade física com a pessoa amada transcende os limites habituais, levando ambos a uma intensa união». Já se sabe, é Agosto, e as pessoas fazem coisas diferentes, por desfastio, entre daiquiris, é só um bocadinho, se doer avisa, está todo no cu da querida. O ano astral não corre mal.
Mas tudo vai por água abaixo outra vez. E de 16 a 22 de Novembro, quase a fazer anos, estarei de novo «mais melancólico» e «absorvido por imagens do passado». Solução de recurso: «arranje um programa com o seu amigo Virgem ou com o seu amigo Touro e verá que tudo melhora». Dá-me ideia que este guia é patrocinado pela ILGA.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

A Oriente do Oriente (Parte I)

Para Edward Said, e em virtude da sua biografia, o colonialismo e o imperialismo não eram abstracções. Já em Orientalismo o conceito é mais abstracto: o Ocidente imperialista, colonizando, construiu (e desenhou à medida dessa construção) o resto do mundo. Daqui decorre a representação errada, por definição e mandato genético, do Oriente; por arrastamento, o empobrecimento do tal resto do mundo.
Said escreve muito bem, é retoricamente sedutor e tem razão em muitos – não em todos – pontos. Mas há rabos-de-palha.
A experiência colonial é o leito de Procustes no qual Said estica, encolhe, tortura, aumenta e diminui a realidade actual. Numa entrevista concedida dois anos antes da publicação do seu best-seller, Said já resumia o argumento do filme:
1) O orientalismo é uma família de ideias que remonta a Heródoto, passa por Dante e Herbelot e chega a Balfour e Kissinger.
2) Escritores, filólogos e historiadores do século XIX: todos desenharam, pintaram e compuseram o quadro no qual se deve reconhecer o Oriente. A imaginação do orientalista é directamente projectada na administração colonial, que por sua vez é convertida num sistema de regras, exclusões e proibições que atingem os orientais no Oriente.
3) O Moderno Orientalismo consiste na passagem do testemunho das escolas coloniais francesas e inglesas ao imperialismo americano.
A definição de orientalismo é, portanto, a de «um poder intelectual […] que constituiu uma biblioteca ou arquivo de informações adquiridas em comum. Uma família de ideias e um conjunto de diferentes maneiras mantiveram  o arquivo unido: estas ideias explicavam o comportamento dos orientais».
De Culture and Imperialism e Power, Politics and Culture falaremos no próximo número. Por agora fiquemo-nos por Orientalismo (edição portuguesa da Cotovia, 2004) e por uma armadilha.
Edward Said, que tanto critica o essencialismo orientalista, diz precisamente que na essência do orientalismo está a distinção inalienável entre a superioridade ocidental e a inferioridade oriental. Quem ler Orientalismo recolherá inúmeros exemplos retirados dos pecados de historiadores, políticos, poetas e filólogos, sobretudo dos séculos XVIII, XIX e XX. Mas Said tem mais fome do que barriga e lembrou-se de incluir Ésquilo na redoma dos orientalistas. Compreende-se a tentação: o orientalismo tem de ser um pecado antigo. O que acontece é que a leitura que Said faz da peça de Ésquilo pode – e deve – ser contestada.
A peça escolhida é Os Persas. Eu leio-a como Maria Helena da Rocha Pereira (Estudos de História da Cultura Clássica, Gulbenkian, 2003) a lê: «É uma peça que impressiona e comove pelo respeito com que trata a cultura do outro lado, mas também porque vive a experiência da Guerra do outro lado.» Os persas perdem a Guerra, não há volta a dar, e, apesar de todo o respeito e sensibilidade com que Ésquilo trata Atossa, Xerxes e Dário, Said vê outra coisa:
«O Oriente deixa de ter o carácter de um outro distante e ameaçador e assume uma configuração familiar. O imediatismo dramático da peça obscurece o facto de o público estar a assistir a uma representação artificial daquilo que um não-oriental transformou em símbolo de todo o Oriente.»
Maria Helena da Rocha Pereira sublinha que a interpretação do destino de Xerxes é feita não à luz da mentalidade oriental, mas da grega, porquanto o considera um castigo (Xerxes tenta domar o Helesponto). Mas há mais. O que Ésquilo nos relata é a superioridade da Hélade, da democracia grega sobre sobre a tirania e autocracia persas (Frederico Lourenço, Grécia Revisitada, Cotovia, 2004).
Todo o argumento de Orientalismo reside na noção de representação como instrumento de poder: quem representa, cria. Mas em Os Persas, para além de tudo o resto, se existe alguma representação é a da própria Hélade e dos seus valores. Como compreender esta inclusão de Ésquilo, a mata-cavalos, na galeria do orientalismo?
Uma resposta simples envia-nos para a distracção: Said tresleu Ésquilo. Outra possibilidade, mais sombria, aposta que a crítica ao orientalismo sofra do mesmo mal do paciente: essencialismo e vontade de representar, portanto, de criar, o Outro.
 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Do outro lado do mundo

Dizia eu que o centro histórico de Medellín é uma espécie de Calcutá dos trópicos. Pode parecer excessivo dizê-lo, porque em Medellín não temos o problema dos cheiros, mas não encontro outro termo de comparação para quem a custo faz gincana entre a multidão de pedintes que cerca a Candelária. Ao contrário da Catedral Metropolitana, que fica no topo de uma praça com jardim e repuxos (o Parque Bolívar, que tem na outra extremidade o Teatro Lido, um belo edifício art déco restaurado a preceito), a Candelária surge entalada numa rua estreita pejada de vendedores ambulantes. O contraste com os bairros novos é brutal. A moderníssima zona de serviços, decalcada a régua e esquadro do modelo americano, tal como os condomínios de luxo do Poblado, o bairro elegante por excelência, onde se concentra o comércio de griffe, os restaurantes mais exclusivos, os colégios e clubes privados, essa Medellín glamorosa (sem ironia) não tem nada a ver com a Medellín da lenda, como ilustrada por Botero, o colombiano que reinterpretou a arte flamenga.
O hotel onde nos instalaram fica a 200 metros do Museu de Antioquia, reduto da colecção que Botero doou à cidade antes de partir para o exílio europeu. Inclui o melhor da sua obra, motivo de atrito permanente com os oligarcas. A sua descoberta faz-se a céu aberto, porque as esculturas monumentais sinalizam um corredor entre a Avenida Greiff e a Rua Calibio, no sentido da Carabobo. Lá dentro, a crueldade da pintura reduz as famosas esculturas ao traço grosso da caricatura para estrangeiro ver. A donación inclui um punhado de nomes que acabam por fazer fraca figura: Rodin, Schnabel, Frankenthaler, Manzù, Ernst, Katz, Matta, Tàpies, Barceló e mais uns quantos. Mesmo Stella, Rauschenberg ou Richard Estes, de quem tanto gosto, me pareceram deslocados. Para ser franco, naquele contexto, à altura de Botero, apenas Débora Arango (1907-2005), a mulher que pintou os primeiros nus frontais. E pagou caro a ousadia num tempo em que a Igreja tinha a última palavra.
Um hotel com 74 poetas expressando-se em 28 idiomas, tradutores, equipas de apoio, acompanhantes, honni soit qui mal y pense, funcionários da organização e jornalistas, deixa de ser um hotel para se transformar num vórtice de egos em horário nobre. Hierática, a delegação da Coreia do Norte nunca se mistura. Os de África também não. Excepção à regra, Frank Chipasula, do Malawi, um homem afável de um humor muito fino. Os europeus cada um na sua, e os do Báltico quase a pedirem desculpa de existirem, atordoados com o langor. Activista gay, o esloveno Brane Mozetic faz a ronda da noite para tirar a limpo se Medellín ou Cáli, qual delas a vera Sodoma. O sueco Henrik Nilsson pergunta por Lisboa e pelo estado da nossa literatura, tão loquaz como Bas Kwakman, o holandês que trata Pessoa por tu. No centro da Babel, colombianos e demais latino-americanos (36 poetas) sorriem às idiossincrasias dos outros. Lina Zerón, do México, prefere o agit-prop — «Não somos o pátio das traseiras do Primeiro Mundo» —, enquanto Andrei Khadanovich, o bielorrusso, se entretém com piruetas. A colombiana Isabel García e seu marido, Armando Orozco, bem como a israelita Rachel Tzvia Back, em cuja companhia viajei para Miami, são companhias amáveis. Com 96 sessões em oito dias, o corrupio entre bibliotecas, casas de cultura, clubes privados, teatros, universidades, bares, parques públicos, etc., dá a medida da impressionante máquina logística à nossa disposição.
Graças a John Viana, o «meu» leitor (os poemas foram traduzidos por Elkin Obregón, mas foi ele que os leu em castelhano), visitei Itagüí e Bello, municípios populares; o subúrbio middle class de Envigado, que ficaria bem na linha de Cascais; e a favela de Santo Domingo, tida como das mais perigosas do mundo antes da chegada de Uribe, hoje uma atracção turística por causa da Biblioteca Espanha, obra de Giancarlo Mazzanti, a que se chega de teleférico a partir das profundezas do vale de Aburrá.
Tudo visto, uma certeza: o eurocentrismo não leva a lado nenhum.
 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER.

Falsos amigos

Se o telejornal espanhol diz que volta às 12h con más noticias não quer dizer que volte com más notícias. Se a Bolsa cierra con ganancias não é ganância financeira, são lucros. O espanhol diz competencia? Pode ser concorrência. Inversión é investimento. Largo é longo. Espantoso? Não, espantoso é o nosso horrível. O advogado vai ao escritório, o gestor ao gabinete? Vão ao despacho (escritorio pode ser escrivaninha), o pessoal vai para a oficina. Mas oficina para carros é taller (mecánico). Talher pode ser cuchara, tenedor ou cuchillo. Mas, porém, todavia... Todavía é ainda. E há (ainda...) aun e aún. Há comicios? São eleições (políticas). Se é assim com palavras correntes, como é que tantos portugueses «sabem» espanhol mas lêem traduções, mesmo más, e acusam os espanhóis de não saberem português? E como é que traduzem uma língua que não estudaram, de um país onde foram uns dias às compras e cujos livros e jornais não lêem? Como é que se despreza um idioma com centenas de milhões de utentes, muitos aqui ao lado (a sul para os madeirenses) e a oeste até à Califórnia? Enquanto se diz que os espanhóis não aprendem línguas e falam castelhano por aí, será sério fingir que os entendemos bem? O que é admissível na relação turística é-o menos na profissional. Por exemplo, traduzir livros e artigos. Ler traduções do castelhano dá vontade não de rir nem chorar mas de procurar o original. Quem se atreve a traduzir inglês e francês sem os ter estudado? Espanhol é que não temos de aprender... Mas convém ensinar diferenças enganosas do castelhano. Aqui, falsos amigos não são os que nós temos; são os dos tradutores. Aparecem sobretudo em idiomas parecidos com o nosso, castelhano à cabeça. São palavras e expressões cuja semelhança com formas portuguesas induz em erro, não se indo ao dicionário nem perguntando a quem sabe. Os resultados ficam sem emenda e não comovem editores de livros e jornais. A crítica desfalece e por ignorância, preguiça, espaço a menos e caridade a mais, não aponta erros. Há leitores que reagem não comprando. A sorte desses editores é que poucos livros espanhóis estão à venda em Portugal, e os leitores não se habituaram a ir buscá-los a Espanha ou encomendá-los em boas livrarias de cá e lá, ou pela Net.
Se com raras excepções os editores ficam imperturbáveis, há tradutores que se preocupam. Divulgo esforços de quem fez listas de «falsos amigos». A primeira que vi foi no artigo de Ángeles Sanz (doutora em Filologia Românica e professora de Português na Escuela Oficial de Idiomas) «Subsídio para a Didáctica do Português a Falantes de Língua Espanhola: ‘Falsos Amigos’», nº 6-7 da revista Boca Bilingüe, Consejería de Educación/Instituto Español de Lisboa, 1991. O trabalho (revisto com apoio de J. Dias Marques, leitor de Português na Complutense) inclui um elenco de mais de 300 vocábulos que levam o tradutor a cair na armadilha, a «falsa semelhança, quer fónica, quer gráfica». Mais recente contributo é o de um grupo hispano-português da Direcção-Geral da Tradução da Comissão Europeia. A partir da recolha no nº 47 (1997) de puntoycoma, boletim das unidades espanholas de tradução da CE, a cooperação de tradutores dos dois Estados produziu em 2006, corrigida e aumentada, «nova versão da lista de falsos amigos português-espanhol/español-portugués»: mais de 370 vocábulos portugueses e cerca de outros tantos castelhanos, no nº 100 de puntoycoma e no nº 23 de a folha, boletim de tradutores portugueses nas instituições europeias. A lista não se dá por terminada e pede comentários e sugestões. Centra-se na «língua geral», sem vocabulários especializados. Acolhe entradas portuguesas e equivalentes espanholas, e entradas espanholas homógrafas e/ou homófonas das nossas, com equivalências portuguesas. É de consulta fácil para tradutores de português para castelhano e vice-versa, em http://ec.europa.eu/translation/bulletins/folha/index.htm. O boletim português e o homólogo são interessantes sobre línguas da UE, debates gramaticais, terminologia, transcrição de alfabetos, novos hábitos, etc. Os tradutores prestam inestimável serviço público em áreas da sua competência e responsabilidade. Agora já não há desculpas, ou há menos.

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Moderadores

Não sei o que é um moderador. Confesso que embirro com a palavra: soa-me sempre a moralizador. O mundo andaria melhor com mais moral e menos moralizadores, com mais moderação e menos moderadores. O substantivo abstracto parece minguar à medida que se materializa nos seus concretos particulares – também vejo mais amantes do que amor. No tempo em que não sabia dizer não, aceitei moderar muitas mesas. Aterrada, e com razão: não há meio de se sair de uma moderação com o amor dos moderados intacto (isto partindo do princípio cândido que esse amor existia à partida). Por mais que a pessoa se esforce, escorrega sempre num adjectivo – que atribuiu a A e não atribuiu a B, ou porque não se quis repetir ou porque a obra de B lhe parece de facto menos relevante do que a de A. Caso prescinda totalmente dos adjectivos, sempre há-de ter uma linha a mais para B do que para C – questão do tamanho dos currículos, mas nenhum C o perdoará. Depois vem a questão, ainda mais delicada, dos tempos: damos quinze minutos a cada, mas há sempre aquele (normalmente o C, ou seja, o de menor currículo) que se estica. Aprendi com Onésimo Teotónio de Almeida o truque eficiente dos bilhetinhos – 5 minutos, 3 minutos, corta. Com o Onésimo, que é professor na Brown University, isto resulta. Comigo, nem por isso: fazem de conta que não vêem. Deve faltar-me um gesto viril no lançamento do papel. E o respeitinho académico, claro. De modo que às tantas, numa mesa da Gulbenkian, peguei no microfone e dei por finda a charla interminável de um dos quatro participantes na mesa. A metade da audiência que me fazia gesticulações iradas, aplaudiu. Mas na outra metade havia uma claque do orador, que assobiou, pediu a palavra e protestou. Foi a minha despedida dessa dura profissão. Hoje, quando me convidam para moderar uma mesa, digo que sou demasiado imoderada para isso. Como as pessoas são difíceis de convencer, acabo por ter de mentir: digo que nessa data estarei no Brasil. É um método tão eficaz que às vezes a mentira acaba por se tornar verdade: desembarco mesmo no Brasil; com sorte, até directamente no Rio de Janeiro. Deve ser por isso que aquele livro chamado O Segredo tem tanto sucesso; quando desejamos muito que uma mentira se torne verdade, isso acaba por acontecer (embora não seja tão fácil transformar uma verdade numa mentira, há quem passe anos a tentar).
Supostamente, o moderador serviria para animar a conversa, para fazer perguntas pertinentes, para dar vivacidade e força ao debate. Seria um trabalho para jornalistas, dos bons (aqueles a que se chamam jornalistas culturais, por fazerem questão de terem cultura geral). Seria mais rigoroso, então, chamar-se à função «animador». Mas na realidade, se nenhum palestrante gosta de ser moderado, ainda menos gosta de ser «animado». Nos tempos que correm, a maioria dos debates são sessões de leitura: o palestrante vem com os seus dizeres escritos (em geral, numa resma de papel). Sob alegação de timidez. Perante as tais resmas dos alegados tímidos, cheias de saber e citações, os desgraçados que se limitem a trazer uns tópicos e que venham dispostos ao improviso e às provocações do moderador, suplicam ficar para o fim e passam as leituras alheias a escrever umas coisas cheias de pânico, que depois lerão, em tom pausado para dar mais ênfase. No fim, nem uma alma da audiência tem vontade de perguntar nada – empanturrado de citações e embalado em leituras sucessivas, quem consegue pensar?
Menos moderação e mais espontaneidade, isso é que seria bom para os debates. Assistir a um grupo de pessoas pensando e discutindo em voz alta. Arriscando dizer disparates, puxar pelo raciocínio e pela inventiva, começar a pensar do zero em coisas já muitas vezes pensadas. É para mim um mistério, o que faz com que as pessoas saiam dos seus sofás para debates que não são mais do que comboios de leituras. Com tanto ensaio bom para ler em casa, silenciosamente. Sou uma impaciente, imoderada e individualista: ler por ler, prefiro ler sozinha. Conhece-se menos gente, mas o prazer é garantido.
 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

Malindecências

O insulto foi tema em artigo recente de Dick Cavett no New York Times. Blogues portugueses fizeram-se dele eco por ser assunto grato ao nosso espírito nacional, que já bem no antanho produzia cantigas de escárnio e maldizer. Comentários diversos armando ao douto perderam algo que nem sequer era muito subtil: o nosso bota-abaixo solta-se por regra envolto em tónica de sarcasmo; os exemplos de Cavett tombavam mais para o lado da ironia. Nanja que o sarcasmo não produza tiradas coloridas de ficar, basta ver aquela de David Mourão-Ferreira em zanga com o primo, João Palma-Ferreira, a chamar-lhe «aprendiz de fascista». Mas a nossa verve prefere Camilo a Eça, este ao fim e ao cabo quase milagrosa excepção.
Confronte-se de relance The Book of Classic Insults, organizado por Tom Steele, que está longe de recolher as mais clássicas do mundo anglo-americano. (Curiosamente, a tradição do insulto em despique é prodigiosa entre os negros americanos, o playing the dozens.  Uma entrada comum pode ser Yo’mama… Há longas, intermináveis e constantemente acrescentadas listas de criativos impropérios.)
O artigo de Cavett empurrou-me para dedilhar algumas estórias pessoais e isso implicará infringir uma regra de ouro do contador de estórias: Nunca armar em herói. A verdade é que estes surgiram em contextos inofensivos, de pura jocosidade entre amigos. E, se fosse eu a apanhar, seria o primeiro a dar a gargalhada. Um exemplo? Há dúzia e meia de anos, no lançamento do livro de Vamberto Freitas, amigo e companheiro de jornada luso-americana, encontro de escritores açorianos na Maia, São Miguel. Coube-me a apresentação da obra e fi-lo num desfile de insultos. O Vamberto, apanhado de surpresa, conseguiu, nos agradecimentos, prolongar as risadas do público reagindo em idêntico tom, desancando-me com irónica pilhéria. Não havia gravador e foi pena. Lembro-me de uma dele: «O bom mestre deve educar discípulos para o ultrapassarem, e este meu livro é a prova de que o Onésimo foi um bom mestre.»
Com este intróito, sinto-me mais à vontade para prosseguir com outras.
Um dia, na Horta, ilha do Faial, colóquio de sala cheia. Uma brasileira de Santa Catarina evocava a colonização açoriana do seu estado: «Eu também sou açoriana, uma açoriana de 260 anos!» Do fundo da sala, saudei-a: «Olhe que está muito bem conservada!»
Há tempos, em Lisboa, o antropólogo luso-americano Miguel Moniz contava-me entusiasmado a sua experiência com um grupo musical: «Um belo grupo! No último show éramos doze!» Não resisti: «Na assistência?»
Estoutra passou-se no Brasil numa festa em casa do Paulo Pereira, genro do linguista Celso Cunha. Dei comigo a falar sozinho. No ar, a minha voz: «Não, esse livro nunca li!» Um venerando catedrático coimbrão, famoso sarcástico, manda do outro lado da sala: «Pois é, Onésimo! Você só lê livros de alto gabarito intellectual»!  Reagi: «Não diga isso! Você sabe que já li a sua obra toda!»
De outra vez, era uma sessão na Culsete, em Setúbal, e eu estava na mesa com os poetas Manuel Medeiros (também dono da livraria) e Eduíno de Jesus. Abre-se o diálogo e um crítico do Expresso comenta: «Ora vejam esta! Eu, um alentejano, aqui em Setúbal sentado a ouvir três açorianos!» Foi-me impossível resistir: «Até que enfim um alentejano inteligente!»
Não abusarei mais. Mas cito ainda uma clássica britânica que Dick Cavett não incluiu. Um brutamontes entra em sala onde elegantes ladies tomam chá e pergunta: «Há aqui algum sítio onde se possa mijar?» Serena, uma das senhoras responde: «Naquele corredor, ao fundo, há duas portas. Na segunda está escrito: “Cavalheiros.” Não faça caso. Entre!»
Há que terminar com um contra-exemplo da generalização inicial sobre a preferência lusa pelo sarcasmo sem reconhecido jeito para o cultivo da ironia. Em Alfama, certa figura local vê passar uma vizinha exibindo um invejável casaco de peles: «Dona Josefa, que lindo casaco!» O elogio foi recebido como portador de veneno. Daí a reacção: «Isto é só para quem pode!»  Dona Mariana não gostou, nem perdoou, e o disparo saiu implacável: «Estranha maneira de pronunciar o “F”!»

 

Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.

«O que queres que te diga?... Estás a decepcionar-me como entrevistador»

Os convidados estão por conta própria: fazem as perguntas e decidem as respostas. E sentam-se à vontade.

Fernando Pinto Amaral publicou recentemente o seu primeiro romance, O Segredo de Leonado Volpi (Dom Quixote). Embalado, o ensaísta e poeta começou pela ironia, mas acabou a falar de amor e no movimento dos corpos celestes.

Gostas de dar entrevistas?
Por que não? O sofá é confortável e descontrai-me. Não é propriamente o divã do Dr. Freud...
Preferias que fosse?
Não sei... Duvido que chegasse a escavar muito fundo, mas talvez interessasse mais os leitores.
Estás a ser irónico?
[Silêncio.]
Não respondeste à minha pergunta...
O que queres que te diga?... Estás a decepcionar-me como entrevistador. Não sabes que a ironia, para funcionar, tem de ficar sempre a meio caminho, manter a ambiguidade?
Não percebi lá muito bem. Então a ironia não é aquela situação em que as nossas frases dizem o contrário do que queremos dizer?
Quando é exactamente o contrário, deixa de funcionar, anula-se a si própria.
Continuo a não entender. Dá-me um exemplo, se não te importas.
Se num dia de tempestade, com ventos ciclónicos e chuvas torrenciais, eu disser «Que lindo dia está hoje!», toda a gente vai entender precisamente o contrário e lá se vai o efeito da ironia. Assim como, se alguém afirmar «Em Portugal nunca houve nem haverá nenhum acto de desonestidade ou corrupção», passa-se a mesma coisa. Mas tudo depende do contexto.
Explica lá melhor...
Por exemplo, se lermos no catálogo de uma boa editora ou num folheto do Ministério da Cultura uma frase como «A literatura portuguesa contemporânea está cheia de inúmeros grandes escritores que a tornam uma das mais brilhantes e originais da Europa», podemos tentar acreditar nisso. Mas se a mesma frase for dita pelo Vasco Pulido Valente ou pelo António Lobo Antunes toda a gente perceberá que é irónica.
E se mudássemos de assunto? Estás há que tempos a falar da ironia...
O que é que querias que fizesse numa entrevista conduzida por ti? Não me calhou melhor entrevistador...
Que falasses do teu romance. Não é para isso que estamos aqui?
O meu romance talvez não te interesse muito.
Lá estás tu outra vez a ser irónico. Olha que a falsa modéstia é uma forma de ironia um bocado irritante.
Talvez tenhas razão, mas ainda me irrita mais o auto-elogio despudorado que vemos por aí.
Não é preciso elogiar, basta que digas alguma coisa acerca do livro. Porquê o título O Segredo de Leonardo Volpi? Quem é o Leonardo Volpi?
É um músico português de origem italiana, mas muito ligado ao Brasil, que fez carreira nas últimas décadas do século XX. Estás satisfeito?
Nem por isso. Porquê o «Volpi»? O homem não é italiano?
Claro que não. O nome provém de um bisavô italiano – mais nada. A Sophia também tinha um bisavô dinamarquês e, que eu saiba, era portuguesa. Portuense, por sinal.
Está bem. Mas porquê o «segredo»?
Ora, ora... A ideia de um «segredo» estimula sempre as pessoas. Não viste o livro daquela espertalhaça australiana, que vai na vigésima edição?
Por favor, fala a sério. Que segredo é esse?
Existe, de facto, um segredo, mas não o posso desvendar. Para isso terás de ler o romance mesmo até ao fim, até ao último capítulo.
Já vi que estás a desconversar. Diz-me, pelo menos, se é uma história de amor.
Talvez uma história de amor e morte, que são as duas faces da mesma moeda.
Ainda acreditas no amor?
Nestes tempos de crise, haverá mais alguma coisa em que possamos acreditar?... Claro que acredito no amor. Um amor absoluto e insensato, capaz de tudo. É o amor que «move o Sol e as outras estrelas», como dizia o Dante. Não estudaste astronomia? Não aprendeste nada sobre o movimento dos corpos celestes?
Lá vem outra vez a ironia...
Achas que sim?...

 

Publicado na edição nº 78 (Março) da LER. Fotografia de Pedro Loureiro.

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