Como recorda o Blogtailors, faltam 15 dias para a Feira do Livro de Frankfurt. Paulo Ferreira e Nuno Seabra Lopes já confirmaram a sua presença e prometem a cobertura de um dos principais eventos editoriais do mundo no seu blogue. A acompanhar com atenção.
«Lembro que minha querida avó morreu escrevendo farmácia com 'ph' e nem por isso eu errava de estabelecimento comercial quando ela me escrevia bilhetes pedindo meu netinho, vá à pharmácia e compre tal remédio», afirmou hoje à agência Lusa António Carlos de Moraes Sartini, director do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, um dia depois de Luiz Inácio Lula da Silva ter promulgado o acordo ortográfico.
A crise de pânico vivida no fim de Maio, durante uma digressão por Portugal para apresentar o disco Maré, está na origem do primeiro livro em prosa de Adriana Calcanhoto. Saga Lusa, editado pela estreante Cobogó, «é, antes de tudo, um relato salvador, expelido do desespero de quem, enquanto escreve, grita para ser lido», pode ler-se no Jornal do Brasil. O livro será lançado na Casa Fernando Pessoa em Novembro.
Uma Outra Presença, mostra bibliográfica de Adolfo Casais Monteiro (1908-1972),abre amanhã ao público na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Até 29 de Novembro. Entrada livre.
«A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. — É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo. — Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto? O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! — chamava-se Chagas. Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom Padre Chagas!»
Eis o capítulo XCVII — todo ele! — de Quincas Borba (1891), o romance de longa elaboração que Machado de Assis publicou depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Presta-se fácil a exemplificar o cepticismo ou o pessimismo que décadas de tradição imputaram à obra machadiana; entretanto, algum candidato a integrar a ortodoxia actual, em lhe calhando o passo no exame de admissão, pegaria do charuto e discorreria sobre o comportamento impiedoso das elites brasileiras e a não menos impiedosa, posto obscura, crítica machadiana. É a desgraça da fortuna crítica de Machado de Assis: quando os críticos não estão ocupados a demonstrar-lhe a genuína «brasilidade», julgam valorizá-lo como mestre no desmascaramento da mesquinhez e da maldade humana. A ironia reina, mas é vulgar: para uns, ironia moralista, que castiga o vício na dobra de uma oração subordinada; para outros, ironia ideológica, que finge agradar à classe dominante para melhor a denunciar. Mas o que se obscurece é o súbito da interrupção através da qual o «contozinho» e respectivo comentário irrompem num curso já orientado para outra finalidade. Ironicamente, com a ironia, figura fácil, obscurece-se o principal, que é o cómico. O cómico é coisa que se apresenta e de apresentar: vive do aparecimento, súbito e inesperado, característica que partilha com os fantasmas e os sismos. Daí que, nos livros de Machado, seja antes do mais uma peripécia de composição: o capítulo que acaba de repente ou nem chega a começar, o capítulo vazio ou que sem propósito legível, o capítulo que integra a sequência do passo que a interrompe. Brás Cubas dizia de um dos seus capítulos de meia dúzia de linhas e aliás na última delas: «Mas este capítulo não é sério.» Nenhum capítulo é sério quando o movimento da composição permite e até produz o enxerto de histórias como aquela do incêndio e do charuto. Ali, o efeito da interrupção não depende da inteligibilidade da sequência que integra nem da inteligibilidade da história nela inserida: depende do inesperado e do despropósito. Trata-se de perceber a piada, no preciso momento do seu aparecimento, sem recordar o que ficou e sobretudo sem querer saber do que está para vir. O inesperado da interrupção torna-se cómico quando não precisa de nenhum propósito. Há, aliás, outra passagem do romance que esclarece isto. Sofia vê cair o carteiro que lhe trouxera uma carta e desata a rir. O narrador concede que o riso era inoportuno e contrastava com a noite mal dormida, o desassossego, o medo de ser difamada; mas afirma que, se leitora o não entende, é porque, «senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro». E remata: «Às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja — um nada.» É uma das melhores descrições do modo cómico do capítulo na estrutura dos livros de Machado. O cómico machadiano é decerto irónico: o que através dele se diz não é alguma coisa que é necessário dizer, é o exemplo de alguma coisa que é possível dizer. E por isso também é filosófico: qualquer coisa se pode dizer, mas é sempre certa coisa em vez de outra, contra outra ou excluindo outra, estando na própria escolha do que se exclui o cerne singularizador da ficção. Voltemos ao «contozinho». Contado para ilustrar a utilidade e a necessidade das catástrofes, o narrador retira dele outra exemplaridade, a do propósito com que o padre Chagas a contou, duplicando a piada da história com a piada do comentário. A brincadeira consiste em presumir um texto original e sugerir que o padre o redescreveu com o fito de veicular a ideia consoladora de que «ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros». Ora o padre pode ter determinado a causa da situação, mas não extirpou dela o escárnio. A bem dizer, tornou-o até mais cruel, sendo mais improvável, mais inesperado, porque alheio aos cálculos de algum sujeito. A inconsciência do bêbado acaba mais aterradora do que a suposta crueldade do sóbrio… Dir-se-ia então haver uma oposição entre o escárnio original — ou natural: «a natureza é às vezes um imenso escárnio», escreve Brás Cubas a respeito da sua Vénus coxa — e o propósito, afinal baldado, de o redescrever de acordo com alguma explicação consoladora. Ora o cómico machadiano abunda em explicações, porém subtrai-lhes o propósito consolador. Pelo contrário: detecta e realça discrepâncias e incongruências, acasos e acidentes, e deixa a nu a falta de finalidade. Não formam, essas explicações, uma filosofia — são genuínos despropósitos, a valorizar nessa mesma qualidade. O mais conhecido deles, a Pandora que aparece no delírio de Brás Cubas, é a paródia negra de todas as figuras providencialistas, incluindo o intelligent design: mãe e inimiga, causa o sofrimento e o desejo de viver. Os romances de Machado não se ocupam do homem brasileiro nem da «natureza humana»: são inquirições da modernidade. Inquirições dum espírito antimoderno, no sentido em que o definiu o americano Marshall Berman, num livro luminoso, All That Is Solid Melts into Air (1982): «Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até ao nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, que, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista antimodernista, a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia.» Partilhando, então, a desconfiança em relação ao progresso, ao sentido, à ciência, Machado percebe a liberdade de redescrever a vida em novas condições, mas recusa radicalmente a consolação da inteligibilidade. O cómico é essa recusa: o cómico machadiano, além de antimoderno, é antitrágico. A sua expressão mais radical é a encenação de uma tragédia no subtil palco que a destrói implacavelmente: o extraordinário Dom Casmurro, o romance em que Bento Santiago, autor ficcional e autobiógrafo, procurar ordenar os capítulos da sua vida. O erro de Bento Santiago tornado Dom Casmurro não foi o ciúme, nem a suspeita associada, mas a fraqueza que não lhe deixou resistir ao trágico. A mais de meio do livro, Bento Santiago desata a escrever como se, no repertório das histórias, não houvesse para ele senão uma história possível, a trágica. O resultado é idêntico ao do padre Chagas: sozinho, sem autoridade que lhe confirme a história que elaborou, por essa via tornada mero exemplo de história que é possível contar, e a sua aventura de escrita mero exemplo de um modo, um mau modo de usar a liberdade de redescrever as histórias da própria vida, acaba com um simulacro de tragédia, para sempre incapaz de saber o que se passou. Fica o livro, claro: que se apresenta - e escarnece, o brejeiro!
Texto publicado (numa versão ligeiramente maior) na edição de Setembro da revista LER, assinalando o primeiro centenário da morte de Machado de Assis. Ilustração de Pedro Vieira.
Dossier especial e obrigatório sobre o centenário no Estadão.
A Fundação Calouste Gulbenkian inaugura amanhã Weltliteratur – Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo!. Comissariada pelo professor universitário António M. Feijó e desenhada pelos arquitectos Francisco e Manuel Aires Mateus, a exposição possibilita uma viagem pela literatura portuguesa do século XX. Até 4 de Janeiro de 2009.
Durante os meses em que decorre a exposição, o Auditório 3 da Fundação Gulbenkian será palco de um ciclo de conferências. Lista completa aqui. A entrada é livre.
A 9 de Dezembro cumprem-se os 400 anos do nascimento de John Milton (1608-1674), mas as homenagens já começaram, como recorda o New York Times. A Livros Cotovia editou há dois anos Paraíso Perdido (tradução de Daniel Jonas).
Quando nos começamos a esquecer de um assunto, há uma comemoração: artigos, livros, exposições. É útil para muitos factos e figuras, à falta de melhor mecanismo. É o caso da história da escravatura, que não se sabe quando começou (talvez logo à saída do Paraíso), mas que não acabou. Em 2007 celebrou-se o bicentenário da abolição do tráfico negreiro pelo Reino Unido, no século XVIII o maior responsável pelo mesmo, mas que no século seguinte o proibiu e fez com que outras potências marítimas seguissem o exemplo. Além de argumentos morais, religiosos e económicos, os britânicos usaram a armada mais forte do mundo, apesar disso só eliminando uma percentagem baixa do tráfico no século XIX. Os EUA acabaram com a escravatura interna após a Guerra Civil e o Império do Brasil pôs-lhe termo oficialmente em 1888. As consequências desse sinistro comércio, e do «modo de produção» a que se destinava, não acabaram de repente por via legislativa e acções de polícia. Basta observar algumas sociedades americanas, principais destinatárias da hemorragia a que a África foi sujeita (tendo a procura estimulado a colaboração de reis e chefes locais), para verificar diferenças de estatuto social e político em que ainda se repercute a escravatura, muito depois de proclamada a igualdade jurídica. Mas a mudança nas instituições e práticas britânicas a partir de 1807 abalou fortemente um sistema em que, até 1838, as colónias inglesas das Caraíbas tinham uma das maiores concentrações de escravos das Américas. Até então, europeus e americanos brancos tendiam a achar natural a existência de escravos nos seus países e colónias. Isto e muito mais é narrado por James Walvin (da Universidade de York) em Uma História da Escravatura (Tinta-da-China, 2008, tradução de A Short History of Slavery, 2007). Acentua o papel das campanhas abolicionistas, mas percorre o fenómeno desde a Antiguidade «clássica» e a Idade Média, fala da escravatura no islão (o que é raro, mesmo em capítulo breve) e documenta como objecto central o que se passou no Atlântico Norte nos séculos XVIII e XIX. No epílogo lembra que a escravatura se mantém em países africanos e asiáticos e (inflectindo a sua posição inicial de historiador) que «a Alemanha nazi» e «a Rússia estalinista do tempo da guerra» não só usaram trabalho escravo como os seus regimes assentaram largamente nele. A ignomínia do sistema esclavagista moderno, a que se associaram Estados da Europa Ocidental (na Oriental existiu outra espécie de servidão) e seus continuadores nas Américas, é exemplificada sem excessos sensacionalistas. A descrição de como os escravos eram transportados e a referência ao cheiro horrível dos navios negreiros bastam para elucidar-nos. Momentos do processo, ecos actuais e sequência comemorativa surgem no dossier que a revista África 21, com sede em Luanda e à venda em Portugal, publicou no nº 9 (Setembro de 2007), com artigos de Conceição Lima, Itamar Souza, João Carlos, Jonuel Gonçalves e António Melo. Alude a museus e «lugares de memória» em diversos países, sobretudo na África Ocidental, em que o passado português não pode ficar bem. É o caso do memorial na ilha de Gorée, no Senegal. É forçoso notar que os discursos africanos sobre a escravatura costumam limitar-se aos crimes europeus, omitindo a acção de países muçulmanos, «árabes» ou não, no comércio negreiro e na servidão em geral. A escravatura, anterior ao islão, expandiu-se com este, como observa Walvin, e em vastas áreas manteve-se até ao século XX e mesmo XXI (a Mauritânia só a aboliu em lei de Agosto de 2007). Marc Ferro, em pelo menos dois livros, já comentara a frequente omissão de que o tráfico de negros para o mundo árabe precedera de sete séculos o iniciado por europeus no século XV. Livros como White Gold, de Giles Milton (2004), relatam o comércio magrebino de escravos europeus brancos e de africanos negros, até ao século XIX. As capturas chegavam a ser feitas no litoral da Irlanda (ou na nossa ilha do Porto Santo). Mas o estudo mais surpreendente, amplo e actualizado é porventura o do antropólogo e islamólogo Malek Chebel, L’Esclavage en Terre d’Islam (Setembro de 2007), sobre «um tabu bem guardado». Essas obras não são o reverso da medalha referida pela competente síntese de Walvin; são o resto dela.
Crónica publicada na edição de Setembro da LER. Ilustração de Pedro Vieira.
A Restante Vida, segundo volume da trilogia Geografia de Rebeldes, de Maria Gabriela Llansol, acaba de ser lançado em Espanha na colecção de ficção da editora Cultiva Comunicación.
«Provavelmente, a Gabriela Llansol será – penso eu – o próximo grande mito literário português. A escrita dela é fulgurante. Não há nada que se possa comparar àquilo». Eduardo Lourenço em entrevista publicada na edição de Setembro da LER.
Nota: Por lapso, os títulos dos livros aqui mencionados não eram os correctos. A correcção está feita. Pedimos desculpas aos nossos leitores.