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João Rodrigues recorda Cardoso Pires

 

Três momentos com o Zé em 1998

2 de Julho
Fui visitar o Zé Cardoso Pires e a Edite, depois de jantar. Pareceu-me bem mas um pouco cansado. No entanto, falámos, falou, quase até à meia-noite. Pessoa e o Bar Americano, ao Cais do Sodré. O Zé viu uma vez uma fotografia que era propriedade do dono do bar, o Fernando, onde este e Pessoa estavam sentados num banco do largo bebendo cervejas pela garrafa. O Pessoa trabalhava, traduzia, para muitas empresas de navegação da zona e ia frequentemente ao Bar Americano, assim como, logo a partir da chegada de manhã, vários donos e empregados dessas empresas. O Zé trabalhou também algum tempo como tradutor para a H. Vaultier e disse: «À parte o génio, claro, fui colega do Pessoa!» Falou-me também do Café Royal, ao fundo da rua do Alecrim, restaurante galego «de grande nível mas caro para mim na altura», que era propriedade da família da Rita Blanco. Depois falámos longamente de fado, maneiras de cantar, Carlos do Carmo, poetas do fado. Tinha comprado uma nova aparelhagem de som e andava entusiasmado a ouvir fado. O neto franzia o nariz quando ele declarava este gosto.

6 de Julho
Fim de tarde. Falámos da Akhmátova e do Modigliani. Como este a desenhou «umas vinte vezes», ele achava que eles tinham tido um caso. Contou-me que o Zé de Bragança, crítico de arte e publicista (que participava de um grupo que o Zé frequentava na zona do Chiado/Alecrim) vivera em Paris e partilhara um quarto com o Modigliani, que era um «chulo artista». Quando ele tinha uma conquista no quarto o Zé de Bragança ia para um hotel e o Modigliani pagava a conta. Um dia passaram numa montra onde havia um sobretudo (ou uma gabardine) de que o Modigliani gostou muito. Voltou atrás duas vezes para observar melhor. No dia seguinte apareceu com o sobretudo vestido! O Abel Manta (pai) também conheceu bem o Modigliani. Estivemos sentados à mesa até às oito e meia e dava um programa sobre o Fidel na TV.

9 de Julho
No chão, deitado, está um corpo
lívido e grisalho.
Não podemos voltar atrás? tudo de novo
desde a última garfada? desde o fazer da barba, talvez?
Alguém diz: Não nos deixe agora.
E, sem dúvida correspondendo ao apelo,
o sangue volta a correr, devagar.
«Já todos morreram menos eu.»
Ainda vale, Zé.
E quando o levam, lá ficamos
agarrados a um pedacinho de esperança.
Que os sinos da igreja ao lado
logo desmentem.
Mesmo assim, ainda o imagino no reencontro:
«Caricato mas dramático, porra!»

 

João Rodrigues é actualmente editor da Sextante.