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LER

Livros. Notícias. Rumores. Apontamentos.

José de Almada Negreiros - A Invenção do Dia Claro (excerto)

O LIVRO

 

Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos

que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.

Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão

estou perdido.

No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito

bem vestidas de quem precisa salvar-se.

 

*

* *

 

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida;

era justamente do que eu necessitava — pôr ciência na minha vida.

Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.

Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma

iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de

Deus. Não basta?

 

*

* *

 

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados

da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o

tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão

bem feitos que há!

Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para

cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro

pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse

tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

 

*

* *

 

Não achas, Mãe? Por exemplo. Há um cão vadio, sujo e com fome,

cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter

fome. Até as crianças já lhe fazem festas.

Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si — não saber cui-
dar de si é ser cão.

Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me

ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para

que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!

 

*

* *

 

Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como

se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore!

quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça:

Um homem!

 

José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro (Excerto)