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Como é que se faz uma grande revista? Uma grande revista, como uma obra-prima literária, costuma ser um acidente - um fruto não tanto de ambição e arrogância como de sorte, talento e inconsciência. Tentar fazer uma grande revista faz tanto sentido como decidir escrever o Ulisses - meio caminho andado para a depressão, para a falência técnica, ou para Finnegans Wake.
Há um problema adicional: as poucas pessoas que têm uma vaga noção de como fazer uma grande revista (e não se pode ter mais do que vagas noções) têm de convencer pessoas que não sabem como fazer uma grande revista a deixá-las fazer uma grande revista. Este processo tortuoso, vulgarmente designado como "financiamento", é um cruel e ciclópico circuito de obstáculos que faz com que as grandes revistas tenham a periodicidade de asteróides ou golos do Yannick Djaló. Até a New Yorker precisou de um bilionário maluco chamado Raoul Fleischmann que a sustentasse durante as catastróficas primeiras tiragens.
Portugal teve algumas boas revistas, mas só uma grande revista. Chamava-se Kapa. Não teve um Raoul Fleischmann. Nasceu, durou três anos e morreu. A constelação onomástica ainda hoje encandeia: Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente, Carlos Quevedo, Leonardo Ferraz de Carvalho, Rui Henriques Coimbra, Edgar Pêra, Manuel Hermínio Monteiro, Agustina Bessa-Luís, Maria Filomena Molder - e isto é só o primeiro número. Não tendo provavelmente o mesmo valor geracional do Spectrum ou do Verão Azul, a Kapa queimou combustível emocional suficiente para ter deixado órfãos e impulsionado alguns ricochetes menores, como a blogosfera; é difícil encontrar um blogger que não tenha uns exemplares guardados - no armário ou na cabeça. Os blogues portugueses foram o produto de uma geração de amadores talentosos que se comportavam como se estivessem a ser pagos para aquilo. A Kapa foi o produto de uma congregação de profissionais talentosos que se comportavam como se estivessem a fazer aquilo de graça. O resto era atitude.
Se a Kapa parece um ícone pouco promissor para um exercício de revivalismo nostálgico, é porque a própria revista fazia esse tipo de exercícios melhor do que ninguém. Aliás, uma das razões para a revista ter envelhecido tão bem é seguramente o seu desprezo pelo presente, um desprezo camuflado pelas opções temáticas e pela perseguição editorial ao zeitgeist, mas evidente no estilo. E pode-se falar com alguma segurança num «estilo Kapa», como se fala no «estilo New Yorker» - um espírito tutelar a que cada colaborador aderia sem diluir a sua individualidade. Qualquer artigo da Kapa pode ser lido hoje como se tivesse sido escrito na semana passada ou nos anos quarenta. Mesmo os textos mais agrilhoados ao presente (a revista durou de 1990 a 1993) se assemelham aos tais exercícios revivalistas: lemos com prazer a paródia de uma análise académica ao fecho de emissão da RTP antes de nos lembrarmos que não estamos a ler uma evocação nostálgica, apelando à memória comum, mas sim um devaneio sobre o que era, na altura, uma ocorrência diária.
O que é que fazia da Kapa uma grande revista? A pergunta é mais fácil de responder a posteriori: basta pegar na ficha técnica e descrever o que lá está. Mas um dos ingredientes comuns de uma grande revista é o facto de parecerem especificamente desenhadas para irritar as revistas que, não sendo grandes, são muito boas. A Kapa, por ser atípica, não tinha rivais; mas tinha um antónimo espiritual na Grande Reportagem, uma boa revista que não conseguia ser grande. Uma das piadas recorrentes nos primeiros números da Kapa era a periódica referência pouco elogiosa a Miguel Sousa Tavares, que viria a ser entrevistado pela revista alguns meses depois, queixando-se amargamente de que «vocês não gostam de mim lá na Kapa», o que pode ser traduzido como «eu não gosto de vocês lá na GR». A amargura é compreensível. Numa altura em que o conceito canónico de jornalismo responsável implicava um cocktail de apartheid, Guerra Fria e Irão/Iraque, os repórteres da Kapa andavam a entrevistar porteiros do Kremlin (o outro), a comparar martinis, e a testar intrepidamente hotéis na Ericeira.
A pose dandinesca pode confundir-se com arrogância; afinal, deplorar o presente é o cúmulo da indolência. Mas a Kapa não deplorava o presente: limitava-se a tratá-lo como se fosse efémero, e como se o verdadeiramente efémero, o trivial, tivesse mais probabilidade de durar, ou pelo menos de conquistar uma afterlife pop. O número inaugural continha uma evisceração de Paulo Castilho assinada por Miguel Esteves Cardoso, ao nível, por exemplo, do que Mark Twain fez a James Fenimore Cooper. A vítima, no entanto, é esventrada com ternura, e com a consciência de que se trava uma batalha perdida. O romance Fora de Horas durou mais que o seu carrasco, o que acaba por validar a tareia.
Uma consulta aos primeiros doze números da revista devolve muitas situações semelhantes. Evidentemente, a sintaxe era imaculada, cada opção estilística era a melhor possível. Não havia erros. O que havia, em abundância, eram gralhas, algumas nos lugares mais ingratos. Um texto intitulado «Iniciações» (nº1) inclui uma chibatada perfeitamente gratuita de Vasco Pulido Valente a Baptista Bastos, contaminada com um estilhaço ortográfico: «Bêbê nessa altura não escervia [sic] e depois não conseguiu aprender.» Em qualquer outra publicação do mundo isto seria uma ignomínia: acusar alguém que não sabe escrever de não saber «escerver» é um hara-kiri para a história dos hara-kiris. Na Kapa é um flirt com a irrelevância. A negligência acaba por reforçar indirectamente o argumento: podemos trocar a ordem das letras e mesmo assim as nossas palavras são melhores que as vossas. E eram. Para todos os efeitos, não se voltou a escerver assim em Portugal.

 

Crónica publicada na edição nº 81 (Junho) da LER.