com cigarros dando para altos janelões com garrafas soturnas canções vazias medito em esquemas falhos de viabilidade financeira – são um descanso estas imaginações diletantes e portuguesas na recuada cidade de Budapeste
permitem chegar apenas a este lugar isolado ao plano B: texto que o autor não burila no interior do café
mas proponho-lhe: esqueça tudo isto os cartazes cubanos a empregada curiosa e loira e avance para o poema seguinte sem grandes remorsos
evitará demorar-se num desenho de nuvens no tecto de um quarto (qual?) festejar o fim de nenhuma vindima aperceber-se do erro juvenil que é fechar um poema com a palavra morte sobretudo não lhe falarei de Walt Whitman ou David Beckham
mas depois, peço-lhe atrase-se outra vez suspenda por um momento a leitura num desses gestos vazios: coçar a cabeça coçar o queixo
espere que este autor recupere de novo terreno e partamos os dois para baixo – haverá outro sítio? – para o poema seguinte
Miguel Manso, in Quando Escreve Descalça-se, ed. Trama
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; E apesar disso, crê! nunca pensei num lar Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. Nem depois de acordar te procurei no leito Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo A tua cor sadia, o teu sorriso terno... Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. Eu não demoro a olhar na curva do teu seio Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo... Eu não sei que mudança a minha alma pressente... Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, Que adoecia talvez de te saber doente.
com os direitos de autor do meu primeiro livro de poesia comprei um m&m amarelo (amendoins cobertos de chocolate) duvido que alguém tenha saboreado os meus poemas com tanto alarido
com os direitos do segundo comprei dois m&ms fiquei abundantemente contente e de queixo bem lambuzado como convém
cada m&m lembrava-me o álvaro que dizia, e passo a citar come chocolates, pequena, e eu, citando novamente, comia chocolates, pequenos
com os do terceiro que ainda não escrevi já me cresce água na boca reservei m&ms na mercearia e pus a boca em pause embora muito a contragosto
bem vejo como este poema é prosaico as minhas desculpas os direitos de autor não dão para mais metáforas do que isto
(e, de resto, ele tinha razão, o álvaro o mundo é uma gigantesca pastelaria onde uns comem, outros veem comer)
Eu nunca gostei de portas, sempre as vi como um grosseiro despotismo. Não percebia por que razão davam passagem a uns e outros não. Rebelei-me contra elas, tornei-me arrombador. Decidido a contestar os seus desígnios, passei os melhores anos da minha juventude a estudar o idioma das fechaduras. Aos poucos, alcancei uma secreta mestria: nenhuma resistia à sedução dos meus arames. As portas franqueadas, e não o que atrás delas se defende, procurava. Poucas vezes roubei. Esta alegria me bastava - introduzir desordem na composta segurança duma casa. Agora que penso nisso, acho que havia algo de bárbaro nessa minha obsessão por destruir a ilusória placidez das fortalezas, os escudos da propriedade, da suficiência. Porta atrás de porta, a minha vida passou. Até chegar aqui, a este lugar indistinto. Também nele há uma porta. Não me seria difícil arrombá-la. Não fosse dar-se o caso (e esse é o castigo da minha soberba) de não saber se estou no céu ou no inferno.
José Miguel Silva, in Erros Individuais, ed. Relógio D' Água
Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?
Tinha medo de morrer, a minha avó. A minha mãe não, nunca teve, e o meu pai tem desde que me lembro um talento inato para contornar a questão.
Era um medo simples e espontâneo, o da minha avó. Receava não acabar o bordado infinito e o alheamento de tudo, com a vaga excepção do afecto. Queria apenas encontrar a manhã, o pequeno missal junto à cabeceira - e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».
Arrependi-me, tantos anos depois, de julgar que a vida se podia - querendo ou não querendo - deitar fora. Ainda aqui estou, vivo e descontente. Não esqueço a antiga criada (foi mais do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me num sorriso se eu, no fundo, desejava a morte que a avó não queria desejar.
E poluo essas memórias, talvez por saber que não voltarei a atravessar com ela a rua onde mais vezes caiu, onde era senhora distante de um mundo acabado, vagamente aristocrático e, por sorte, ainda sem muito trânsito.
Ninguém, mesmo que queira, quer morrer. E, do mais, ficam-nos vislumbres, pormenores, anotações cujo sentido descobrimos demasiado tarde.
Não sei se a cultura ajuda. Preferia a qualquer obra de Bach que a música ambulante do amolador pudesse de novo passar na infância, na infância breve de estarmos ambos vivos, sentados na varanda. À espera de dias iguais, sob a alta sombra de pinheiros.